sexta-feira, 27 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL OS DEUSES (1872) - Parte IV

(continuação) 

As pessoas religiosas sempre acreditaram que os testemunhos desses diabos eram perfeitamente conclusivos, e os escritores do Novo Testamento citavam as palavras desse sinistro personagem das trevas com muita satisfação. O facto de Cristo ter resistido à tentação do demónio era considerado conclusiva evidência de que ele era apoiado por algum deus, ou algum ser superior aos homens. São Mateus cita a tentativa de o diabo tentar o suposto filho de Deus; e isto sempre maravilhou os cristãos, de como a tentação foi tão heróica e nobremente repelida. A citação à qual me refiro é a seguinte: "Então Jesus foi conduzido pelo espírito para a selva para ser tentado pelo diabo. E quando o tentador chegou até ele, ele disse: 'Se és o filho de Deus, transforma estas pedras em pão'. Mas ele respondeu dizendo: 'Está escrito: o homem não pode viver só de pão, mas de todas as palavras que vêm da boca de Deus'. Então o diabo conduziu-o à cidade sagrada, foram até o pináculo do templo e Satan disse: 'Se és o filho de Deus, atira-te lá para baixo; por que está escrito, Ele dará condições aos anjos para te proteger antes de atingires qualquer pedra.' Jesus então disse-lhe: 'Está escrito também, não deverás tentar o senhor teu Deus.' Então o diabo conduziu-o até uma montanha alta e ofereceu-lhe todos os reinos do mundo para toda a sua glória, e disse-lhe:'Tudo isto te darei se te atirares e me adorares.' Os cristãos afirmam agora que Cristo era um Deus. Se fosse um Deus, é claro que o diabo saberia, e de acordo com essa história, o diabo levou o Deus omnipotente e o colocou no pináculo do templo e tentou induzi-lo a se atirar lá de cima contra o chão. Falhando nisso, ele levou o criador e dono do universo para uma elevada montanha e ofereceu-lhe o mundo -- seu grão de areia -- se Ele -- o Deus de todos os mundos, se atirasse e o adorasse, um pobre diabo, que não tinha onde cair morto! Seria possível que o diabo fosse tão idiota? Poderíamos dar qualquer crédito a esse deus por não cair numa armadilha tão ridícula? Pense nisto! O diabo -- o príncipe dos trapaceiros -- o rei da astúcia -- o mestre da manha, tentando subornar um Deus com um grão de areia que lhe pertencia! Há algo na literatura religiosa do mundo mais totalmente absurdo do que isto? Esses demónios, de acordo com a Bíblia, eram de vários tipos -- alguns podiam ouvir e ver, outros eram surdos e mudos. Nem todos podiam ser expulsos da mesma forma. Os espíritos surdos e mudos eram um tanto difíceis de lidar. São Mateus fala de um senhor que levou o seu filho a Cristo. O menino dizia-se, era possesso por um espírito mudo, sobre os quais os discípulos não tinham qualquer poder. "Jesus disse ao espírito: "Tu, espírito surdo e mudo, eu te ordeno a sair e não entrar mais nele'." Então, o espírito surdo (ouvindo o que ele disse) gritou (sendo mudo), e imediatamente se retirou. A facilidade com a qual Cristo lidou com esse espírito maravilhou os discípulos e eles perguntaram-lhe reservadamente por que é que eles não puderam expulsar aqueles espíritos. E ele respondeu: "Estas coisas podem se fazer com nada mais que oração e jejum". Haverá no mundo um cristão que acredite nesta história se fosse descrita em qualquer outro livro? A resposta é que essas pessoas piedosas fecharam a sua razão ao abrir as suas Bíblias. Essa crença em forças de deuses e diabos tem origem no facto de que o homem é circundado por fenómenos que ele considera bons ou ruins. Fenómenos que afectavam positivamente os homens eram considerados como bons espíritos. Fenómenos considerados desagradáveis eram considerados maus espíritos. Admitia-se que todos os fenómenos fossem provocados por espíritos. Os espíritos dividiam-se de acordo com os fenómenos e os fenómenos eram bons ou maus quando afectavam o homem. Bons espíritos provocavam os bons fenómenos, e maus espíritos, o mal -- então a ideia de diabo tornou-se tão universal como a ideia de um deus. Muitos escritores sustentam que, uma ideia, sendo universal, tem que ser verdadeira; que todas as ideias universais são inatas, e que ideias inatas não podem ser falsas. Se é verdade que uma ideia, sendo universal, prova que é inata, e se é verdade que uma ideia, sendo inata, prova que é verdadeira, então, os que acreditam numa ideia inata devem admitir que a ideia de um deus superior à natureza e um diabo superior à natureza é exactamente o mesmo que a existência desses diabos é tão evidente quanto a existência desse deus. A verdade é que um fenómeno de um deus tido como bom, e um diabo tido como mau. E seria tão natural e lógico supor que um diabo causasse felicidade quanto supor um deus que trouxesse miséria. Consequentemente, se um deus, inteligente, infinito e supremo é o autor imediato de todos os fenómenos, seria difícil determinar se tal criatura é amiga ou inimiga do homem. Se todos os fenómenos fossem bons, poderíamos afirmar que foram produzidos por um ser perfeitamente benevolente. Se fossem todos ruins, poderíamos dizer que foram produzidos por forças maléficas; mas como os fenómenos são considerados como afectando o homem, bons ou maus, eles deverão ser produzidos por forças antagónicas de diferentes espíritos; por uns que algumas vezes atuam com bondade e outras vezes com malícia; ou todos os fenómenos são produzidos pela necessidade, sem referência a suas acções sobre o homem. A tola doutrina de que todos os fenómenos podem ser traçados pela interferência de espíritos bons ou ruins, tem sido, e ainda é, quase universal. Que a maioria das pessoas ainda crê em algum espírito pode alterar a ordem natural dos factos, é provado pelo facto de que quase todos recorrem à oração. Milhares estão a cada momento implorando para que alguma força superior interceda a seu favor. Alguns querem que sua saúde se restabeleça; alguns pedem para que os entes distantes e ausentes sejam supervisionados e protegidos, alguns pedem riquezas, alguns imploram por chuva, alguns querem que doenças estacionem, alguns imploram em vão por comida, alguns pedem para reviver, uns poucos pedem mais sabedoria, e de vez em quando um pede para que o seu deus faça o que achar melhor. Milhares pedem para ser protegidos pelo diabo; alguns, como Davi, pedem vingança e outros pedem a Deus para não os deixar cair em tentação. Todas estas orações se baseiam na crença, na ideia de que uma força, não só pode como provavelmente irá alterar a ordem dos factos da natureza. Esta crença está presente em praticamente todas as tribos e nações. Todos os livros sagrados estão cheios de descrições dessas interferências, e nossa Bíblia não é excepção a esta regra. Se acreditarmos numa força superior à natureza, é perfeitamente natural que admitamos que esta força pode e irá produzir interferências nos acontecimentos da natureza. Se não há esta interferência, que função poderá ter esta força? As escrituras nos dão as mais maravilhosas descrições de divina interferência? Animais falam com homens; fontes brotam de ossos secos; o sol e a lua param no céu para que General Josué tenha mais tempo para assassinar; os ponteiros de um relógio de sol retornam dez graus para convencer um rei insignificante de um povo bárbaro, que ele não morrerá cozinhado; fogo recusa-se a arder; água recusa-se teimosamente a seguir o seu caminho, mas ergue-se como uma barreira; grãos de areia viram piolhos; bengalas, para satisfazer um truque, curvam-se e se transformam em serpentes e se engolem umas as outras; gritando e rindo da força de gravidade, sobem montes e seguem andarilhos por pura diversão; profecias tornam-se mais fáceis que a história; os filhos de deuses se apaixonam por mulheres do mundo; mulheres transformam-se em estátuas de sal com o propósito de manter um evento memorável fresco na mente das pessoas; excelentes artigos de enxofre são importados do céu livre de taxas; roupas se recusam a sair dos seus donos por quarenta anos; pássaros mantêm profetas andarilhos livres de despesas de restaurante e alimentos; ursos despedaçam crianças por terem zombado de um homem calvo; força muscular depende do tamanho da cabeleira de um homem; mortos revivem apenas para fazer gozação dos seus inimigos e herdeiros; bruxas e feiticeiras conversam livremente com as almas das pessoas mortas, e Deus em pessoa torna-se um pedreiro e escultor, depois de ter sido um alfaiate e costureiro. O véu entre a terra e o céu estava sempre rasgado ou suspenso. A sombra deste pequeno mundo, a radiância do céu, e o fulgor do inferno se misturaram e diminuíram até que o homem não soubesse mais em que país habitava. O homem morava num mundo irreal. Ele confundia as suas ideias, os seus sonhos, com coisas reais. Os seus medos se transformaram em monstros terríveis e maliciosos. Ele vivia no meio de monstros e fadas, ninfas e donzelas, duendes e fantasmas, bruxas e magos, fantasmas e assombrações, deuses e diabos. As profundezas escuras e as trevas eram preenchidas com presas e asas -- com bicos e patas -- com olhares sinistros e bocas debochadas -- com a malícia da deformidade e a astúcia do ódio, e com todas as formas viscosas que o medo pode desenhar e pintar sobre a tela sombreada da escuridão. Isto é suficiente para tornar alguém quase insano com piedade para pensar sobre tudo o que o homem, na longa noite, tem sofrido; das torturas que sofreu, circundado, supunha, por forças malignas e agarrado por fantasmas cruéis. Não surpreende que se ajoelhasse trémulo sobre os altares por ele construídos e os molhasse com seu próprio sangue. Não surpreende que ele implorasse a sacerdotes ignorantes e mágicos desavergonhados, por ajuda. Não surpreende que ele rastejasse trôpego nas empoeiradas portas dos templos, e lá dentro, na insanidade e desespero, implorasse a deuses surdos que atendessem suas amargas súplicas de agonia e desespero. 

(continua)

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