(continuação)
As pessoas religiosas sempre acreditaram que os
testemunhos desses diabos eram perfeitamente conclusivos, e os escritores do
Novo Testamento citavam as palavras desse sinistro personagem das trevas com
muita satisfação. O facto de Cristo ter resistido à tentação do demónio era
considerado conclusiva evidência de que ele era apoiado por algum deus, ou
algum ser superior aos homens. São Mateus cita a tentativa de o diabo tentar o
suposto filho de Deus; e isto sempre maravilhou os cristãos, de como a tentação
foi tão heróica e nobremente repelida. A citação à qual me refiro é a seguinte:
"Então Jesus foi conduzido pelo espírito para a selva para ser tentado
pelo diabo. E quando o tentador chegou até ele, ele disse: 'Se és o filho de
Deus, transforma estas pedras em pão'. Mas ele respondeu dizendo: 'Está
escrito: o homem não pode viver só de pão, mas de todas as palavras que vêm da
boca de Deus'. Então o diabo conduziu-o à cidade sagrada, foram até o pináculo
do templo e Satan disse: 'Se és o filho de Deus, atira-te lá para baixo; por
que está escrito, Ele dará condições aos anjos para te proteger antes de
atingires qualquer pedra.' Jesus então disse-lhe: 'Está escrito também, não
deverás tentar o senhor teu Deus.' Então o diabo conduziu-o até uma montanha
alta e ofereceu-lhe todos os reinos do mundo para toda a sua glória, e disse-lhe:'Tudo
isto te darei se te atirares e me adorares.' Os cristãos afirmam agora que
Cristo era um Deus. Se fosse um Deus, é claro que o diabo saberia, e de acordo
com essa história, o diabo levou o Deus omnipotente e o colocou no pináculo do
templo e tentou induzi-lo a se atirar lá de cima contra o chão. Falhando nisso,
ele levou o criador e dono do universo para uma elevada montanha e ofereceu-lhe
o mundo -- seu grão de areia -- se Ele -- o Deus de todos os mundos, se
atirasse e o adorasse, um pobre diabo, que não tinha onde cair morto! Seria
possível que o diabo fosse tão idiota? Poderíamos dar qualquer crédito a esse
deus por não cair numa armadilha tão ridícula? Pense nisto! O diabo -- o
príncipe dos trapaceiros -- o rei da astúcia -- o mestre da manha, tentando
subornar um Deus com um grão de areia que lhe pertencia! Há algo na literatura
religiosa do mundo mais totalmente absurdo do que isto? Esses demónios, de
acordo com a Bíblia, eram de vários tipos -- alguns podiam ouvir e ver, outros
eram surdos e mudos. Nem todos podiam ser expulsos da mesma forma. Os espíritos
surdos e mudos eram um tanto difíceis de lidar. São Mateus fala de um senhor
que levou o seu filho a Cristo. O menino dizia-se, era possesso por um espírito
mudo, sobre os quais os discípulos não tinham qualquer poder. "Jesus disse
ao espírito: "Tu, espírito surdo e mudo, eu te ordeno a sair e não entrar
mais nele'." Então, o espírito surdo (ouvindo o que ele disse) gritou
(sendo mudo), e imediatamente se retirou. A facilidade com a qual Cristo lidou
com esse espírito maravilhou os discípulos e eles perguntaram-lhe
reservadamente por que é que eles não puderam expulsar aqueles espíritos. E ele
respondeu: "Estas coisas podem se fazer com nada mais que oração e
jejum". Haverá no mundo um cristão que acredite nesta história se fosse
descrita em qualquer outro livro? A resposta é que essas pessoas piedosas
fecharam a sua razão ao abrir as suas Bíblias. Essa crença em forças de deuses
e diabos tem origem no facto de que o homem é circundado por fenómenos que ele
considera bons ou ruins. Fenómenos que afectavam positivamente os homens eram
considerados como bons espíritos. Fenómenos considerados desagradáveis eram
considerados maus espíritos. Admitia-se que todos os fenómenos fossem provocados
por espíritos. Os espíritos dividiam-se de acordo com os fenómenos e os
fenómenos eram bons ou maus quando afectavam o homem. Bons espíritos provocavam
os bons fenómenos, e maus espíritos, o mal -- então a ideia de diabo tornou-se
tão universal como a ideia de um deus. Muitos escritores sustentam que, uma
ideia, sendo universal, tem que ser verdadeira; que todas as ideias universais
são inatas, e que ideias inatas não podem ser falsas. Se é verdade que uma
ideia, sendo universal, prova que é inata, e se é verdade que uma ideia, sendo
inata, prova que é verdadeira, então, os que acreditam numa ideia inata devem
admitir que a ideia de um deus superior à natureza e um diabo superior à natureza
é exactamente o mesmo que a existência desses diabos é tão evidente quanto a
existência desse deus. A verdade é que um fenómeno de um deus tido como bom, e
um diabo tido como mau. E seria tão natural e lógico supor que um diabo
causasse felicidade quanto supor um deus que trouxesse miséria.
Consequentemente, se um deus, inteligente, infinito e supremo é o autor
imediato de todos os fenómenos, seria difícil determinar se tal criatura é
amiga ou inimiga do homem. Se todos os fenómenos fossem bons, poderíamos
afirmar que foram produzidos por um ser perfeitamente benevolente. Se fossem
todos ruins, poderíamos dizer que foram produzidos por forças maléficas; mas
como os fenómenos são considerados como afectando o homem, bons ou maus, eles
deverão ser produzidos por forças antagónicas de diferentes espíritos; por uns
que algumas vezes atuam com bondade e outras vezes com malícia; ou todos os
fenómenos são produzidos pela necessidade, sem referência a suas acções sobre o
homem. A tola doutrina de que todos os fenómenos podem ser traçados pela
interferência de espíritos bons ou ruins, tem sido, e ainda é, quase universal.
Que a maioria das pessoas ainda crê em algum espírito pode alterar a ordem
natural dos factos, é provado pelo facto de que quase todos recorrem à oração.
Milhares estão a cada momento implorando para que alguma força superior
interceda a seu favor. Alguns querem que sua saúde se restabeleça; alguns pedem
para que os entes distantes e ausentes sejam supervisionados e protegidos,
alguns pedem riquezas, alguns imploram por chuva, alguns querem que doenças
estacionem, alguns imploram em vão por comida, alguns pedem para reviver, uns
poucos pedem mais sabedoria, e de vez em quando um pede para que o seu deus
faça o que achar melhor. Milhares pedem para ser protegidos pelo diabo; alguns,
como Davi, pedem vingança e outros pedem a Deus para não os deixar cair em
tentação. Todas estas orações se baseiam na crença, na ideia de que uma força,
não só pode como provavelmente irá alterar a ordem dos factos da natureza. Esta
crença está presente em praticamente todas as tribos e nações. Todos os livros
sagrados estão cheios de descrições dessas interferências, e nossa Bíblia não é
excepção a esta regra. Se acreditarmos numa força superior à natureza, é
perfeitamente natural que admitamos que esta força pode e irá produzir
interferências nos acontecimentos da natureza. Se não há esta interferência,
que função poderá ter esta força? As escrituras nos dão as mais maravilhosas
descrições de divina interferência? Animais falam com homens; fontes brotam de
ossos secos; o sol e a lua param no céu para que General Josué tenha mais tempo
para assassinar; os ponteiros de um relógio de sol retornam dez graus para
convencer um rei insignificante de um povo bárbaro, que ele não morrerá
cozinhado; fogo recusa-se a arder; água recusa-se teimosamente a seguir o seu
caminho, mas ergue-se como uma barreira; grãos de areia viram piolhos;
bengalas, para satisfazer um truque, curvam-se e se transformam em serpentes e se
engolem umas as outras; gritando e rindo da força de gravidade, sobem montes e
seguem andarilhos por pura diversão; profecias tornam-se mais fáceis que a
história; os filhos de deuses se apaixonam por mulheres do mundo; mulheres
transformam-se em estátuas de sal com o propósito de manter um evento memorável
fresco na mente das pessoas; excelentes artigos de enxofre são importados do
céu livre de taxas; roupas se recusam a sair dos seus donos por quarenta anos;
pássaros mantêm profetas andarilhos livres de despesas de restaurante e
alimentos; ursos despedaçam crianças por terem zombado de um homem calvo; força
muscular depende do tamanho da cabeleira de um homem; mortos revivem apenas
para fazer gozação dos seus inimigos e herdeiros; bruxas e feiticeiras
conversam livremente com as almas das pessoas mortas, e Deus em pessoa torna-se
um pedreiro e escultor, depois de ter sido um alfaiate e costureiro. O véu
entre a terra e o céu estava sempre rasgado ou suspenso. A sombra deste pequeno
mundo, a radiância do céu, e o fulgor do inferno se misturaram e diminuíram até
que o homem não soubesse mais em que país habitava. O homem morava num mundo
irreal. Ele confundia as suas ideias, os seus sonhos, com coisas reais. Os seus
medos se transformaram em monstros terríveis e maliciosos. Ele vivia no meio de
monstros e fadas, ninfas e donzelas, duendes e fantasmas, bruxas e magos,
fantasmas e assombrações, deuses e diabos. As profundezas escuras e as trevas
eram preenchidas com presas e asas -- com bicos e patas -- com olhares
sinistros e bocas debochadas -- com a malícia da deformidade e a astúcia do
ódio, e com todas as formas viscosas que o medo pode desenhar e pintar sobre a
tela sombreada da escuridão. Isto é suficiente para tornar alguém quase insano
com piedade para pensar sobre tudo o que o homem, na longa noite, tem sofrido;
das torturas que sofreu, circundado, supunha, por forças malignas e agarrado
por fantasmas cruéis. Não surpreende que se ajoelhasse trémulo sobre os altares
por ele construídos e os molhasse com seu próprio sangue. Não surpreende que
ele implorasse a sacerdotes ignorantes e mágicos desavergonhados, por ajuda.
Não surpreende que ele rastejasse trôpego nas empoeiradas portas dos templos, e
lá dentro, na insanidade e desespero, implorasse a deuses surdos que atendessem
suas amargas súplicas de agonia e desespero.
(continua)
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