domingo, 22 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL - OS DEUSES (1872) - Parte II


(continuação)

O livro, chamado Bíblia, é cheio de trechos igualmente horríveis, injustos e atrozes. Este é o livro para ser lido nas escolas para tornar nossos filhos amorosos, gentis e suaves! Este é o livro que querem colocar na nossa constituição como a fonte de toda autoridade e justiça! Estranho! Que ninguém tenha sido perseguido pela igreja por adorar um deus mau, enquanto milhões têm sido perseguidos por considerá-lo bom. A igreja ortodoxa jamais perdoará os Universalistas por dizer "Deus é amor". Sempre foi considerado como uma das mais altas evidências de verdade da pura religião insistir que todos os homens, mulheres e crianças mereçam danação eterna. Tem sido sempre heresia dizer que "Deus no final nos salvará a todos". Somos solicitados a justificar essas passagens assustadoras, essas leis infames de guerra, porque a Bíblia é a palavra de Deus. Na verdade nunca houve, nem poderá haver, qualquer argumento que prove a inspiração divina de qualquer um daqueles livros. Na ausência de evidência positiva, analogia e experiência, argumentos são simplesmente impossíveis, e na melhor das hipóteses, pode-se provocar apenas uma inútil agitação no ar. No momento em que admitimos que o livro é muito sagrado para ser duvidado, ou até mesmo visto racionalmente, tornamo-nos servos mentais. É infinitamente absurdo supor que um deus que mandasse uma comunicação a seres inteligentes, tornasse um crime para ser punido com chamas eternas, se esses seres usassem a sua inteligência para compreender essa comunicação. Se temos o direito de usar a nossa razão, nós certamente temos o direito de agir de acordo com ela, e nenhum deus tem o direito de nos punir por tal acção.
A doutrina que afirma que a felicidade futura depende da crença é monstruosa. É a infâmia das infâmias. A noção de que a fé em Cristo será recompensada com a felicidade eterna, enquanto agir de acordo com a razão, observação e experiência merece sofrimento eterno, é tremendamente absurda para refutação, e só poderá ser explicada por uma mistura infeliz de insanidade e ignorância chamada "fé". Qual o homem que pensa, poderá acreditar que sangue agrada a um deus? E no entanto, todo o nosso sistema religioso é baseado nessa crença. Os judeus pacificavam Jeová com o sangue de animais, e de acordo com o sistema cristão, o sangue de Cristo amoleceu um pouco o coração de Deus, o que motivou a possível salvação de alguns poucos bem-afortunados. É difícil de acreditar como a mente humana pode crer em terríveis ideias como esta, e como um homem são pode ler a Bíblia e permanecer acreditando na doutrina da inspiração. Se a Bíblia é falsa ou verdadeira, isto é irrelevante em comparação com a liberdade de pensamento da nossa espécie. Salvação através da escravidão é inútil. Salvação da escravidão é inestimável. Até onde o homem creia que a Bíblia é infalível, aquele livro é o mestre. A civilização deste século não é filha da fé, mas da não-crença -- o resultado do livre pensamento. Tudo o que é necessário, e assim me parece, para convencer qualquer homem racional de que a Bíblia é uma invenção puramente humana -- uma invenção bárbara -- é lê-la. Leia como você leria qualquer outro livro; pense como você pensaria com outro livro qualquer; tire as vendas da reverência dos seus olhos; tire do seu coração o fantasma do medo; tire do trono da sua mente a figura enroscada que é a superstição -- e leia a Bíblia Sagrada, e você ficará assustado em supor como seria possível que um ser de infinita sabedoria, bondade e pureza pudesse ser o autor de tamanha ignorância e atrocidade. Os nossos ancestrais, não só possuíam a sua fábrica de deuses, mas faziam diabos também. Esses diabos eram geralmente deuses decaídos. Alguns haviam liderado revoltas mal sucedidas; alguns tinham sido apanhados suavemente descansando sobre uma nuvem, beijando a esposa do deus dos deuses. Esses demónios eram geralmente simpáticos aos homens. Há em relação a eles um facto maravilhoso: em quase todas as teologias, religiões e mitologias, os diabos têm sido muito mais humanos e misericordiosos que os deuses. Nenhum diabo jamais deu ordem a um dos seus generais para assassinar crianças ou estripar o ventre de uma mulher grávida. Todas essas barbaridades eram comuns ao comportamento dos bons deuses. As pestes eram enviadas pelos mais misericordiosos dos deuses. A fome assustadora, na qual os lábios pálidos de crianças sugavam os seios vazios das mães mortas, era enviada pelos deuses amorosos. Nenhum diabo jamais foi acusado de cometer essas terríveis brutalidades. Um desses deuses, de acordo com a lenda, afogou um mundo inteiro, com excepção de oito pessoas. O jovem, o velho, a bela e desamparada, foram impiedosamente devorados pelas águas. Esta, a mais terrível tragédia que a imaginação de sacerdotes ignorantes já pôde conceber, foi o acto, não de um diabo, mas de um deus, assim chamado, que homens ignorantes adoram até nossos dias. Que mancha um acto como este deixaria no carácter de um diabo! Um dos profetas de um desses deuses, tendo em seu poder um rei capturado, fê-lo em pedaços à frente de todo o povo. Já se soube de algum diabo sendo responsável por tal selvajaria?
Um desses deuses, segundo se conta, teria dado a seguinte orientação, com relação à escravidão: "Se comprares um servo judeu, seis anos deverá ele trabalhar, e no sétimo, deverá ele ser libertado por nada. Se ele vier por si só, deverá ir por si só; se ele for casado, deverá a sua esposa ir com ele. Se o seu mestre lhe tiver oferecido uma esposa, e ela lhe der filhos e filhas, a mulher e os filhos deverão pertencer ao mestre, e neste caso, ele irá só. E se o servo disser: eu amo meu mestre, minha mulher e meus filhos; não irei sozinho. Então o mestre deverá levá-lo aos juizes. Ele deverá então trazê-lo para a porta, e o mestre furará sua orelha com uma sovela; e ele o servirá para sempre".
De acordo com este relato, um homem ganhará a liberdade com a condição de que desista para sempre da sua esposa e filhos. Já se soube de algum diabo que tenha forçado um marido, um pai, a tomar uma decisão tão cruel? Quem poderá adorar um deus como este? Quem poderá ajoelhar-se diante de tal monstro? Quem poderá orar para um ente tão maléfico? Todos os deuses ameaçaram com o sofrimento eterno as almas dos seus inimigos. Algum diabo já fez tão infame ameaça? A mais vil acção de um diabo foi aquela que se fala com relação a Jó e sua família, acção esta realizada sob a expressa permissão de um desses deuses, e para decidir a pequena diferença de opinião entre sua altíssima serenidade e como o carácter de "meu servo Jó".
A primeira descrição do diabo que temos é aquela encontrada naquele livro puramente científico chamado Gênesis, e assim temos: "Agora a serpente era mais astuta que qualquer besta no campo que o Senhor Deus havia feito, e ela disse à mulher, sim Deus não disse que não deverás comer o fruto da árvore do jardim? E a mulher disse à serpente nós poderemos comer o fruto da árvore do jardim; mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, Deus tinha dito, não deverás comê-lo e não deverás tocá-lo, senão morrereis. E a serpente disse à mulher, certamente não morrerás. E Deus saberá que se no dia em que comeres, teus olhos permanecerão abertos, e serás como deuses, sabendo o bem e o mal. E quando a mulher soube que o fruto era bom como comida, que era agradável aos olhos, e uma árvore desejável para nos fazer sábios, ela tirou o fruto e o comeu, e deu-o também a seu marido, e ele o comeu. E o Senhor Deus disse, olha, o homem se tornou um de nós, conhece o bem e o mal; e agora, deixemos colocar fora sua mão e tirar a árvore da vida: e comer, e viver para sempre. E então, o Senhor Deus os expulsou do jardim do Éden, da terra onde estavam. Então ele expulsou o homem, e o colocou no leste do Jardim do Éden  um querubim e uma espada flamejante, que mantiveram o caminho da árvore da vida." De acordo com esta história, a palavra do diabo realizou-se literalmente, Adão e Eva não morreram e tornaram-se deuses, passando a conhecer o bem e o mal. A história conta, entretanto, que os deuses odiavam a educação e conhecimento, exactamente como agora. A igreja ainda guarda com muita fé a perigosa árvore do conhecimento, e tem exercido todo o seu poder com o objectivo de manter a humanidade longe de comer o seu fruto. Os sacerdotes nunca pararam de repetir a velha falsidade e a velha ameaça: "Não devereis comê-lo nem devereis tocá-lo, senão morrereis." De cada púlpito vem o mesmo grito, nascido do mesmo medo: "Se comerdes, sereis como deuses, conhecendo o bem e o mal". Por esta razão a religião odeia a ciência, a fé detesta a razão, a teologia é inimiga mortal da filosofia, e a igreja, com sua espada flamejante, ainda guarda a árvore do conhecimento, e como seus supostos fundadores, amaldiçoa até as profundezas os pensadores que o comeram e se tornaram como deuses. Se a história do Gênesis for verdadeira, não deveríamos, na verdade, agradecer à serpente? Ela foi a primeira professora, a primeira advogada do ensino, a primeira inimiga da ignorância, a primeira a sussurrar aos ouvidos humanos a palavra sagrada liberdade, a criadora da ambição, a autora da modéstia, do questionamento, da dúvida, da investigação, do progresso e da civilização. Dê-me a tempestade e o vendaval do pensamento e acção, em vez da calma morta da ignorância e da fé! Expulse-me do Éden quando quiser; Mas antes, deixe-me comer do fruto da árvore do conhecimento.

(continua)

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