quarta-feira, 11 de novembro de 2015

MARIA HELENA


Morreste. Acabaste. Eu sei onde estás. Estás no meu pensamento. Vou, portanto, falar para mim mesmo como se para ti fosse. Sabes que não sou de prolongar tristezas nem de fazer lutos mórbidos e pesados. Este escrito será o meu luto.

Vivemos ambos uma boa infância e juventude. Tu, como mais velha, cedo tentaste exercer um certo mando sobre mim. Cedo também me comecei a libertar dessa supremacia e a tornar-me teu igual. Os nossos dezanove meses de diferença não te davam assim tanta legitimidade. Essas tentativas de libertação causaram algumas divergências entre nós e até umas questiúnculas às vezes resolvidas com umas sapatadas e lá vinha a nossa mãe acabar com os diferendos muitas vezes com as palmadas da ordem. Nada nos machucou. Tudo foi benéfico e a nossa amizade e amor de irmãos consolidou-se. Lembro-me do dia, tinha apenas catorze anos, em que eu sozinho, chamei os bombeiros e te levámos para o hospital por teres partido uma perna ao patinarmos no rinque do Cacém. Eu e os bombeiros, no hospital de S. José, entrámos por ali dentro e fui barrado por um enfermeiro que me mandou sair. Disse-lhe que só saía quando soubesse o que iriam fazer à minha irmã, e só depois de saber que irias ser operada é que me retirei. Já cá fora telefonei para casa e para o emprego do Pai para relatar o sucedido usando os únicos 25 tostões que tinha no bolso. A tua doença começou a mostrar-se a partir desse acidente. Os desequilíbrios e a falta de coordenação motora começaram a tomar lenta e progressivamente conta de ti. A esclerose do nervo óptico também. Felizmente tiveste sempre uma grande força de vida. Os nossos pais tudo fizeram. Os médicos sempre nos disseram não haver cura, mas lá foste vivendo sempre com alegria e força de vontade. Afastámo-nos um pouco com a minha ida para os Pupilos. Apesar dos fins-de-semana passados em casa, já não era mesma coisa. A Escola do Exército, hoje Academia Militar, também nos separou um pouco. A minha ida para Timor piorou a situação e foi durante esse tempo que te casaste. Durou pouco essa união. Quando voltei já estavas separada. Ainda bem. Não tiveste sorte na escolha. Depois o meu casamento também nos afastou, mas a amizade e o nosso amor fraternal continuou. Tiveste sempre o apoio abnegado da nossa Mãe e lembrei-to muitas vezes. Nem sempre lhe correspondias como ela mereceu e acabaste por sentir-lhe a falta após a sua morte. Ficaste só comigo e não te abandonei. Tentei por tudo que conseguisses continuar na vossa casa. Devido aos acidentes que tiveste acabei por optar pela tua ida para o lar onde a Mãe estivera nos seus últimos dias. Aí recebeste as minhas visitas e do teu sobrinho. Sempre que podíamos íamos-te buscar e, auxiliada por nós, conseguias almoçar fora e dar alguns passeios. Depois começou a rápida degradação. Deixaste de poder sair por já não conseguires andar nem ver. Mais tarde tiveste que ficar acamada. Nunca deixaste de me ter ao pé de ti. Nos últimos tempos já nem me vias, ouvias ou falavas. Saía da tua cabeceira completamente desfeito e desmoralizado. Foi muito tempo. Acho que qualquer ser humano não merecia isso. Agora já não sofres e eu também. Mas é sempre um choque. Não escreverei mais para ti mas estarás sempre no meu pensamento, o teu lugar de agora.

2 comentários:

  1. Rui, acabo de ler este teu texto, mensagem em memória da tua falecida irmã que me sensibilizou bastante Ao lê-lo lembrei-me também da minha irmã que já partiu há 13 anos. Um abraço meu amigo!

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  2. Na realidade os mortos que nos dizem muito, é no nosso pensamento que ficam e raramente falamos deles. Não sei se será para não os incomodarmos ou para nos preservarmos dessa lembrança. Comigo acontece isso. Deixo-os serenos na sua imortalidade, sim... porque já não voltam a morrer, e relembro-me deles em silêncio, sem sequer os projectar na minha memória visual, para não me fazerem ter saudades... A saudade é um inferno porque nos consome e nos tortura. Prefiro ter apenas a certeza de que já não estão cá, mas que enquanto estiveram fizeram parte de nós todos... Os mortos são por defeito silenciosos e quedos e assim os devemos deixar continuar a sua inexistência no mundo dos vivos... As viagens para a morte devem ser extremamente desgastantes e incómodas, mas da morte para a vida seriam ainda mais incompreensíveis e mesmo inexplicáveis. Da morte não se nasce... Apenas da vida se nasce para a morte. Isso é uma verdade absoluta...
    Forte abraço solidário com o teu entendimento também sereno da morte...
    ernani balsa

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