sábado, 7 de novembro de 2015

CACÉM


Nas células que agora formam o nosso corpo já não deve haver nenhuma da fundação do mesmo. Sendo assim como é que, recordações de infância ficam gravadas no nosso cérebro?

Nasci na maternidade Alfredo da Costa. Os meus pais moravam no bairro do Arco-do-Cego. Os funcionários da junta do crédito público, seu primeiro emprego, depois passou a contabilista numa empresa, podiam concorrer às casas de renda resolúvel. Eram precisos alguns 30 anos para as casas passarem a ser dos utentes. Parece impossível mas ainda me lembro da rua, tenho vislumbres da casa e tinha apenas 4 anos. Lembro bem de ter apanhado uma barata na rua e levado para mostrar à minha mãe, portanto, já bicharinheiro nessa época. O meu Pai era citadino, oriundo das chamadas “boas” famílias, mas tinha espírito de campesino. Assim que teve possibilidades encontrou uma casa no Cacém com um quintalinho. Conseguiu, não sei como, passar a casa de Lisboa a outro funcionário, recebendo umas massas. Já no Cacém, ainda antes dos cinco anos, passei a viver como um campónio. Os meus companheiros de brincadeiras andavam descalços e pastavam cabras. Cedo aprendi a caçar lagartos, cobras, rãs, pássaros com ratoeiras e fisga, mas daí a andar descalço… sempre tive pés de prima-dona e qualquer grão de areia dava-me cabo da pele. A nossa casa já tinha canalização mas a água ainda não passava por ali. Era preciso acartar água do chafariz central em bilhas de zinco de vinte e cinco litros. Pagávamos a uma vizinha, mulher com força de homem, para fazer esse serviço, mas muitas vezes não chegava e éramos nós a fazer esse transporte. Cedo o meu pai, comigo já a ajudar, construiu uma capoeira para coelhos e galinhas. Um pouco mais tarde também tivemos uma cabra. Naquele tempo já havia muitos caçadores por aquelas bandas. O meu pai comprou uma espingarda calibre 16, a um amigo que deixara de caçar, de dois canos e mocha. Era uma Bayard belga que ainda hoje guardo como recordação. Com sete oito anos já o acompanhava por aquelas serras, armado de cajado, procurando coelhos e andando atrás das perdizes. Teria os meus 10 anos quando pela primeira vez o meu Pai me deixou atirar a um tordo poisado numa oliveira. Aos 14 anos saí de casa de espingarda na mão, com meia dúzia de cartuchos e a uns 500 metros da porta de casa cacei a minha primeira perdiz. Nem sei bem como fiz aquilo, virei a arma para o bando que se levantou e vai disto. Quando a perdiz caiu nem sei o que senti. Foi de tal modo que o “bichinho” se entranhou e nunca mais me largou. Aos 14/15 anos, aos fins-de-semana quando saía do Pilão, acompanhava o meu Pai e os amigos nas caçadas e nas grandes patuscadas que se lhes seguiam, nas tascas dos arredores. Havia uma característica, no lugar da Tala, onde se comia e bebia muito bem. Lembro-me de um dos amigos do meu Pai se meter nos copos e ficar um pouco zonzo. À tarde, na 2ª volta da caça, o nosso amigo desatou a correr e a gritar; “coelho, coelho” e tropeçando num graveto de uma cepa, caiu redondo de borco. Quando corremos a levantá-lo perguntámos: -- Onde está o coelho? – Ao que o nosso amigo responde: -- Em cima da árvore! – Claro que a risada foi geral. Naquele tempo poucos tinham automóvel e os caçadores deslocavam-se de comboio ou camionete. Nessa caçada, o nosso amigo já muito toldado, enjoou e metendo a cabeça fora da janela deitou a “carga” ao mar. Recolhendo-se, gritou para o motorista: “Pare, pare!” O coitado tinha deitado a placa dentária pela janela junto com o vomitado. Vejam agora o que era uma camionete parada e os passageiros todos com uns paus a remexerem o vómito que se espalhara pela estrada à procura dos dentes do nosso amigo. E encontraram-se. Belos tempos. Se fosse agora quem pararia? E quem ajudaria a procurar? Bem ficaria sem dentes. Foi uma juventude plena e cheia de encantos. Os nossos cães perdigueiros viviam no canil mas durante o dia tinham autorização para entrar em casa contra as ordens da minha Mãe que bem refilava para manter a casa limpa. Sempre que chegava, vindo dos Pupilos, a primeira coisa a fazer era soltar os cães e dar uma boa volta com eles. Ao Domingo de manhã, o meu Pai abria-lhes a porta e os bichos saltavam para cima da minha cama acordando-me com saltos e lambidelas na cara. Pobre da minha Mãe que tinha de meter os lençóis para lavar. Viver com cachorros é salutar e eu tive essa sorte. O Cacém de hoje nada tem a ver com o meu Cacém. No sítio onde matava perdizes só há prédios. Os rios estão encarcerados em tubos e a água corre pelos canos, mas o velho chafariz queda-se triste por já não ter serventia. Infelizmente ainda lá tenho a minha única irmã doentíssima e num lar. Desloco-me lá todas as semanas para estar com ela que, praticamente, não dá por mim. Às vezes, no trajecto, tento rever os lugares da minha juventude, mas nada me dizem. Aquele não é o meu Cacém. Onde havia serranias há centros comerciais. O alcatrão e o cimento cobriu os meus locais de brincadeira. O rio onde nadei e pesquei grandes enguias, não existe. Hoje, em Lisboa, onde resido, abro uma gaveta e olho a minha velha fisga que conservo, e regresso à minha juventude quando, com ela, me escondia de árvore em árvore procurando qualquer incauto passaroco que se deixasse aproximar. As recordações de infância quando vivida como a vivi, são indeléveis. Lembro agora que já escrevi sobre isto, mas voltou a recordação.

2 comentários:

  1. O que ficou do passado


    No meu passado, já bem distante,
    era apenas uma pequena criança
    que vivia uma brincadeira constante.

    Hoje, resta-me a lembrança
    daqueles dias de folguedos,
    com a imaginação a assentar arraiais,
    sem receios, sem medos,
    porque havia sempre a asa protectora
    dos braços dos meus pais.

    Recordo, como se fosse agora,
    passear com o meu avô, de mão dada,
    numa pequena caminhada
    até à praça do coreto,
    exibindo o meu sobretudo preto,
    com botões de prata,
    que a minha avó fizera nos serões
    de inverno frio,
    com uma fazenda forte, mas barata.

    Naquele passeio e com aqueles botões,
    eu olhava, em desafio,
    os meus amigos que, com ar de espanto,
    me invejavam tanto.

    Quando sonho, assim, acordado,
    parece-me estar vendo, por uma fresta,
    um filme muito antigo
    e, por isso mesmo, eu digo
    que, agora, já só me resta
    o que ficou do passado.

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    1. Amigo Tiago. As minhas pobres prosas ficam sempre enriquecidos com os teus comentários. É melhor o comentário do que o "post". Assim vale a pena. O meu obrigado pela tua amizade. Abração

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