Nas células que agora formam o
nosso corpo já não deve haver nenhuma da fundação do mesmo. Sendo assim como é
que, recordações de infância ficam gravadas no nosso cérebro?
Nasci na maternidade Alfredo da
Costa. Os meus pais moravam no bairro do Arco-do-Cego. Os funcionários da junta
do crédito público, seu primeiro emprego, depois passou a contabilista numa
empresa, podiam concorrer às casas de renda resolúvel. Eram precisos alguns 30
anos para as casas passarem a ser dos utentes. Parece impossível mas ainda me
lembro da rua, tenho vislumbres da casa e tinha apenas 4 anos. Lembro bem de
ter apanhado uma barata na rua e levado para mostrar à minha mãe, portanto, já
bicharinheiro nessa época. O meu Pai era citadino, oriundo das chamadas “boas”
famílias, mas tinha espírito de campesino. Assim que teve possibilidades
encontrou uma casa no Cacém com um quintalinho. Conseguiu, não sei como, passar
a casa de Lisboa a outro funcionário, recebendo umas massas. Já no Cacém, ainda
antes dos cinco anos, passei a viver como um campónio. Os meus companheiros de
brincadeiras andavam descalços e pastavam cabras. Cedo aprendi a caçar
lagartos, cobras, rãs, pássaros com ratoeiras e fisga, mas daí a andar
descalço… sempre tive pés de prima-dona e qualquer grão de areia dava-me cabo da
pele. A nossa casa já tinha canalização mas a água ainda não passava por ali.
Era preciso acartar água do chafariz central em bilhas de zinco de vinte e
cinco litros. Pagávamos a uma vizinha, mulher com força de homem, para fazer
esse serviço, mas muitas vezes não chegava e éramos nós a fazer esse
transporte. Cedo o meu pai, comigo já a ajudar, construiu uma capoeira para
coelhos e galinhas. Um pouco mais tarde também tivemos uma cabra. Naquele tempo
já havia muitos caçadores por aquelas bandas. O meu pai comprou uma espingarda
calibre 16, a um amigo que deixara de caçar, de dois canos e mocha. Era uma
Bayard belga que ainda hoje guardo como recordação. Com sete oito anos já o
acompanhava por aquelas serras, armado de cajado, procurando coelhos e andando
atrás das perdizes. Teria os meus 10 anos quando pela primeira vez o meu Pai me
deixou atirar a um tordo poisado numa oliveira. Aos 14 anos saí de casa de
espingarda na mão, com meia dúzia de cartuchos e a uns 500 metros da porta de
casa cacei a minha primeira perdiz. Nem sei bem como fiz aquilo, virei a arma
para o bando que se levantou e vai disto. Quando a perdiz caiu nem sei o que
senti. Foi de tal modo que o “bichinho” se entranhou e nunca mais me largou.
Aos 14/15 anos, aos fins-de-semana quando saía do Pilão, acompanhava o meu Pai
e os amigos nas caçadas e nas grandes patuscadas que se lhes seguiam, nas
tascas dos arredores. Havia uma característica, no lugar da Tala, onde se comia
e bebia muito bem. Lembro-me de um dos amigos do meu Pai se meter nos copos e
ficar um pouco zonzo. À tarde, na 2ª volta da caça, o nosso amigo desatou a
correr e a gritar; “coelho, coelho” e tropeçando num graveto de uma cepa, caiu
redondo de borco. Quando corremos a levantá-lo perguntámos: -- Onde está o coelho?
– Ao que o nosso amigo responde: -- Em cima da árvore! – Claro que a risada foi
geral. Naquele tempo poucos tinham automóvel e os caçadores deslocavam-se de
comboio ou camionete. Nessa caçada, o nosso amigo já muito toldado, enjoou e
metendo a cabeça fora da janela deitou a “carga” ao mar. Recolhendo-se, gritou
para o motorista: “Pare, pare!” O coitado tinha deitado a placa dentária pela
janela junto com o vomitado. Vejam agora o que era uma camionete parada e os
passageiros todos com uns paus a remexerem o vómito que se espalhara pela
estrada à procura dos dentes do nosso amigo. E encontraram-se. Belos tempos. Se
fosse agora quem pararia? E quem ajudaria a procurar? Bem ficaria sem dentes.
Foi uma juventude plena e cheia de encantos. Os nossos cães perdigueiros viviam
no canil mas durante o dia tinham autorização para entrar em casa contra as
ordens da minha Mãe que bem refilava para manter a casa limpa. Sempre que
chegava, vindo dos Pupilos, a primeira coisa a fazer era soltar os cães e dar
uma boa volta com eles. Ao Domingo de manhã, o meu Pai abria-lhes a porta e os
bichos saltavam para cima da minha cama acordando-me com saltos e lambidelas na
cara. Pobre da minha Mãe que tinha de meter os lençóis para lavar. Viver com
cachorros é salutar e eu tive essa sorte. O Cacém de hoje nada tem a ver com o
meu Cacém. No sítio onde matava perdizes só há prédios. Os rios estão
encarcerados em tubos e a água corre pelos canos, mas o velho chafariz queda-se
triste por já não ter serventia. Infelizmente ainda lá tenho a minha única irmã
doentíssima e num lar. Desloco-me lá todas as semanas para estar com ela que,
praticamente, não dá por mim. Às vezes, no trajecto, tento rever os lugares da
minha juventude, mas nada me dizem. Aquele não é o meu Cacém. Onde havia serranias
há centros comerciais. O alcatrão e o cimento cobriu os meus locais de
brincadeira. O rio onde nadei e pesquei grandes enguias, não existe. Hoje, em
Lisboa, onde resido, abro uma gaveta e olho a minha velha fisga que conservo, e
regresso à minha juventude quando, com ela, me escondia de árvore em árvore
procurando qualquer incauto passaroco que se deixasse aproximar. As recordações
de infância quando vivida como a vivi, são indeléveis. Lembro agora que já
escrevi sobre isto, mas voltou a recordação.
O que ficou do passado
ResponderEliminarNo meu passado, já bem distante,
era apenas uma pequena criança
que vivia uma brincadeira constante.
Hoje, resta-me a lembrança
daqueles dias de folguedos,
com a imaginação a assentar arraiais,
sem receios, sem medos,
porque havia sempre a asa protectora
dos braços dos meus pais.
Recordo, como se fosse agora,
passear com o meu avô, de mão dada,
numa pequena caminhada
até à praça do coreto,
exibindo o meu sobretudo preto,
com botões de prata,
que a minha avó fizera nos serões
de inverno frio,
com uma fazenda forte, mas barata.
Naquele passeio e com aqueles botões,
eu olhava, em desafio,
os meus amigos que, com ar de espanto,
me invejavam tanto.
Quando sonho, assim, acordado,
parece-me estar vendo, por uma fresta,
um filme muito antigo
e, por isso mesmo, eu digo
que, agora, já só me resta
o que ficou do passado.
Amigo Tiago. As minhas pobres prosas ficam sempre enriquecidos com os teus comentários. É melhor o comentário do que o "post". Assim vale a pena. O meu obrigado pela tua amizade. Abração
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