domingo, 29 de novembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL OS DEUSES (1872) - Parte V

(continuação)

O selvagem, quando emerge do estado de barbarismo, gradualmente perde a fé nos seus ídolos de madeira e de pedra, e em seu lugar coloca uma multidão de espíritos. À medida que ele avança em conhecimento, ele descarta a sua trupe de espíritos, e em seu lugar coloca um único, tido como supremo e infinito. Supondo que o seu espírito é superior à natureza, ele oferece-lhe adoração e submissão em troca de protecção. Por fim, concluindo que não obtém qualquer ajuda da sua divindade -- descobrindo que toda a procura pela necessidade absoluta termina sempre em fracasso -- percebendo que o homem, sob nenhuma condição, pode conceber o incondicional -- ele começa a investigar os factos que o circundam, e só contar com ele mesmo. As pessoas estão começando a pensar, a raciocinar e a investigar. Gradualmente, dolorosamente, mas certamente, os deuses vão sendo expulsos da terra. Só muito raramente são eles, por pessoas muito religiosas, supostos de interferir nos afazeres do homem. Em quase todos os assuntos, nós somos levados a supor que somos livres. Desde a invenção das locomotivas a vapor e dos caminhos-de-ferro, de modo que os produtos de todos os países puderam ser intercambiáveis, os deuses têm perdido a habilidade de produzir a fome. Aqui e ali eles assassinam uma criança, por que eles são idolatrados pelos pais. Como regra eles têm desistido de causar acidentes em ferrovias, explodir caldeiras, pipocar lampiões de querosene. Cólera, febre-amarela e varíola são ainda consideradas armas dos deuses; mas varicela, sarna e peste são agora atribuídas a causas naturais. De modo geral, os deuses têm parado de afogar criancinhas, excepto como punição de não guardar os sábados. Eles ainda prestam alguma atenção aos afazeres dos reis, homens de inteligência ou de grandes fortunas; mas pessoas comuns são abandonadas à própria sorte. Em guerras entre grandes nações os deuses ainda interferem; mas em brigas comuns, o melhor, junto com um juiz honesto é quase sempre o vencedor.
A Igreja não pode abandonar a doutrina da divina providência. Desistir dela seria desistir de tudo. A Igreja tem de insistir que a oração é atendida -- que alguma força superior à natureza ouve e atende o pedido do sincero humilde cristão, e que esta misteriosa força, de algum modo actua sobre tudo. Um clérigo devoto procura toda oportunidade de impressionar a mente de seu filho de que Deus cuida de toda a criatura; que um pardal atrai sua atenção e que seu amor actua sobre toda a sua criação. Acontecendo ele ver, certo dia, uma garça procurando por comida, ele mostra ao filho o exemplo de um animal perfeitamente adaptado para conseguir sua sobrevivência.
"Veja", disse ele, "como essas pernas são programadas para a caça! que corpo esbelto ela tem! veja com que elegância ela introduz e retira suas patas da água! ela não provoca nenhuma agitação. Ela é capaz de abordar o peixe sem ser notada".
"Meu filho," disse ele, "é impossível ver este animal sem reconhecer a criação, assim como a bondade de Deus, dando os meios de sobrevivência." "Sim", respondeu o menino, "eu vejo a bondade de Deus desde que se veja o lado da garça; mas, pai, você não acha esta regra um tanto desvantajosa para o peixe?"

Até o mais moderno dos religiosos, mesmo duvidando de grande parte das supostas interferências divinas no nosso mundo actual, ainda crê que no início, algum deus fez as leis que governam o universo. Ele acredita que, em consequência dessas leis o homem pode levantar um peso maior com ou sem uma alavanca; que esse deus fez as leis e estabeleceu de certa forma a ordem das coisas, que duas coisas não podem ocupar o mesmo espaço simultaneamente; que um corpo, sendo posto em movimento, mantém-se em movimento até ser parado; que há uma maior distância ao redor que cruzando um círculo; que um quadrado perfeito tem quatro lados idênticos, em vez de cinco ou seis.
Ele insiste que foi necessário interferência divina para que um todo seja maior que suas partes, e que se não fosse pela providência divina, duas vezes um poderia ser maior que duas vezes dois, e que bastões e cordas teriam a mesma forma. Como o antigo deus escocês, ele agradece a Deus que o Domingo fique no fim e não no meio da semana, e que a morte aconteça só no fim, e não no princípio da vida, dando-nos, consequentemente, tempo suficiente para que nos preparemos para o evento solene. Essas pessoas vêem interferência divina por toda a parte. Eles insistem que o universo foi criado, e que as adaptações que vemos na natureza seriam puramente aparentes. Eles mostram-nos o brilho do sol, as flores, as chuvas de Abril, e afirmam por divino tudo o que há de belo e útil no mundo. Será que passa pelas suas mentes que o câncer seria tão belo como uma rosa? Que eles têm satisfação de chamar a adaptação de meios para atingir um fim, é tão aparente no câncer que nas chuvas de abril? Como é belo o processo de digestão! Que engenhoso método o de o sangue ser envenenado de tal forma que possa alimentar um câncer! Por que meio maravilhoso todo o organismo humano seja consumido para alimentar um câncer! Veja por quais métodos engenhosos ele se alimenta às custas de um organismo trémulo! Veja como ele rápida e eficientemente, cresce! Que belas cores ele apresenta! Por que maravilhosos mecanismos ele se enraíza e atinge os mais escondidos nervos dolorosos para sustentar sua vida! Veja através do microscópio que ele é um milagre de ordem e beleza! Nem toda a ingenuidade humana pode deter o seu crescimento. Pense na quantidade de pensamento que teve de ser produzido para inventar um meio para que a vida de alguém pudesse ser consumida para produzir um câncer. É possível ver isto e supor que exista uma administração no universo, e que o inventor desse maravilhoso câncer seja uma força infinitamente poderosa, engenhosa e boa? Informam-nos que o universo foi planeado e criado, e que é absurdo imaginar que a matéria tenha existido por toda a eternidade, mas que esta ideia é perfeitamente aceitável para um deus. Se um deus criou o universo, então deverá ter havido um tempo em que ele o começou a criar. Antes disto deverá ter existido uma eternidade, na qual nada havia -- absolutamente nada -- excepto o suposto deus. De acordo com esta teoria, o deus levou uma eternidade, por assim dizer, num vácuo infinito e na mais completa ociosidade. Admitindo que um deus criou o universo, a questão que se levanta é, de que ele o criou? Certamente ele não foi feito do nada. Nada sendo considerado matéria-prima é muito falho. Conclui-se que deus construiu o universo dele mesmo, sendo ele a única existência. O universo é material, e se ele foi feito por um deus, o deus tinha de ser também material. Com este pensamento em mente Anaxímedes de Mileto disse: "Criação é a decomposição do infinito." Está demonstrado que a terra cairia no sol só pelo fato de que ela é atraída por outros mundos ainda mais além, e assim sucessivamente sem fim. Isto prova que o universo não tem fim. Se um universo infinito foi feito de um deus infinito, o que sobrou então do deus?
A ideia de uma divindade criativa vem sendo abandonada gradualmente, e a maioria das mentes verdadeiramente científicas admitem que matéria tenha existido por toda a eternidade. Ela é indestrutível, e o indestrutível não pode ter sido criado. Esta é a glória do nosso século ter sido demonstrada a indestrutibilidade e existência eterna da força. Nem matéria nem força pode ser criada ou eliminada. Força não pode existir independentemente da matéria. Matéria só existe em conjunto com força, e consequentemente, uma força independentemente da matéria, e superior à natureza, é uma impossibilidade demonstrada. Força, deve ter existido por toda a eternidade, e não pode ter sido criada. Matéria, nas suas infinitas formas, de terra sem vida aos olhos da pessoa que amamos, e força, em todas as suas manifestações, de movimento simples até grandes pensamentos, negam a criação e desafiam o controlo. Pensamento é uma forma de força. Nós andamos com a mesma força com que pensamos. O homem é um organismo que transforma muitas formas de força em pensamento-força. O homem é uma máquina na qual se coloca o que chamamos comida, e produz o que chamamos pensamento. Pense na incrível modificação que permitiu com que pão fosse transformado na tragédia de Hamlet! Um deus deveria não só ser material, mas deveria ser um organismo capaz de transformar outras formas de força em pensamento. Isto é o que ocorre com a alimentação. Portanto, se um deus pensa, ele deve alimentar-se, ou seja, ele deverá possuir formas de suprir a força para pensar. É impossível supor um ser que dá eternamente força à matéria, e não tem qualquer meio de suprir a força doada. Se nem matéria nem força foram criadas, que evidência temos nós de uma força superior à natureza? Os teólogos irão provavelmente responder: "Nós temos leis e ordem, causa e efeito, e além disso, matéria não se colocaria por si só em movimento." Suponhamos, para fins de argumento, que não há um ser superior à natureza, e que matéria e força tenham existido eternamente. Agora suponha que dois átomos se chocando, haverá um efeito? Sim. Suponhamos que eles venham em direcções opostas e com igual força, eles sejam parados, para dizer o mínimo. Isto seria um efeito. Se é assim, então nós temos força, matéria e efeito sem um ser superior à natureza. Agora suponha que dois átomos, como os dois primeiros, venham juntos nas mesmas circunstâncias, não seria o efeito exactamente o mesmo? Sim. Mesmas causas produzindo os mesmos efeitos é o que chamamos lei e ordem. Então, temos matéria, força, efeito, lei e ordem sem um ser superior à natureza. Agora sabemos que todo efeito tem de ter uma causa e que toda causa tem de ter um efeito. Os átomos chegando juntos, produzem um efeito, e como todo efeito tem que ter uma causa, o efeito produzido pela colisão de átomos, deve ter sido provocado por algo. Então temos matéria, força, lei, ordem, causa e efeito sem um ser superior à natureza.

(continua)

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