sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

ENSAIOS DE ROBERT G. INGERSOLL OS DEUSES (1872) - Parte VIII

(continuação)

Que utilidade têm os deuses para o homem? Não é resposta dizer que um deus criou o mundo, estabeleceu certas regras, e então voltou sua atenção para outros assuntos, deixando os seus filhos fracos, ignorantes e desamparados, para lutar a batalha da vida sozinhos. Não é resposta declarar que em algum outro mundo este deus nos vai dar um pouco de, ou toda a sua felicidade. Que direito temos nós de esperar que um deus perfeitamente sábio, bom e poderoso fará algum dia melhor do que tem feito e está fazendo? O mundo está cheio de imperfeições. Se ele foi feito por um ser infinito, que razão temos nós para dizer que o tornará mais perfeito do que ele agora é? Se o "pai" infinito permite que seus filhos vivam na ignorância e na desgraça agora, que evidência haverá de que ele melhorará essas condições? Deus conseguirá mais poder? Tornar-se-á ele mais misericordioso? Aumentará o seu amor pelas suas pobres criaturas? Poderá a conduta de infinita sabedoria, força e amor, ser modificada? Poderá o infinito ser capaz de qualquer melhora que seja? Somos informados pelos religiosos que este mundo é uma espécie de escola, que o mal que nos circunda tem o objectivo de desenvolver as nossas almas, e que só pelo sofrimento o homem pode tornar-se puro, forte, virtuoso e sublime.
Supondo que isto seja verdade, o que dizer daqueles que morrem na infância? As criancinhas, de acordo com esta filosofia, nunca poderão desenvolver-se. Elas são desafortunadas em escapar da nobre influência da dor e do sofrimento, e em consequência disto, são condenadas à eternidade de inferioridade mental. Se os religiosos estão certos nesta ideia, ninguém é mais desafortunado que os felizes, e deveríamos invejar os que sofrem. Se o mal é necessário para o desenvolvimento do homem, na sua vida, como será possível para em espírito melhorar na perfeita alegria do céu?
Desde que Paley achou o seu relógio, o argumento da "criação" tem sido considerado como irrespondível. A Igreja ensina que este mundo, e tudo que ele contém foi criado como o conhecemos hoje; que a relva, as flores, as árvores, todos os animais incluindo o homem, foram criações especiais e que não possuem quaisquer relações entre si. Os mais ortodoxos admitirão que alguma terra tenha sido levada para o mar; que o mar tenha avançado um pouco sobre a terra, e que as montanhas sejam um pouco mais baixas que na época da criação. A teoria do desenvolvimento gradual era desconhecida para nossos pais; a teoria da evolução não lhes ocorria. Nossos pais olhavam o arranjo das coisas como sendo o arranjo original. A terra parecia-lhes fresca das mãos de um deus. Não conheciam nada sobre a evolução gradual ao longo de incontáveis anos, mas supunham que a quase infinita variedade de vegetais e animais existiam desde o princípio.
Suponha que numa ilha encontremos um homem de milhões de anos, e suponha que o vejamos com uma bela carruagem, construída sob os mais modernos métodos. E suponha ainda que ele nos diga que aquilo era o resultado de centenas de milhares de anos de trabalho e de projectos; que por cinquenta mil anos ele usara a madeira mais plana que pudesse encontrar, antes que percebesse que quebrando a madeira ele poderia obter a mesma superfície usando a metade do peso; então passaram-se mais milhares de anos para que ele inventasse rodas para a prancha; que as primeiras rodas eram sólidas, e milhares de anos de ideias o fizeram inventar os raios e pneus; que por milhares de anos ele usara rodas sem eixo; que se passaram mais centenas de anos para usar quatro rodas em vez de duas; que por um bom tempo ele andava atrás da carruagem ao descer ladeiras, para segurá-la; e que por puro acaso ele inventou a canga; poderíamos concluir que este homem fosse infinitamente engenhoso e perfeito mecânico? Suponha que o encontremos numa elegante mansão, e que ele nos informe que vive na casa por quinhentos anos antes de ter a ideia de pôr um telhado, e que só recentemente colocara janelas e portas; poderíamos dizer que desde o início ele era infinitamente bem informado e um perfeito arquitecto? Não temos que concluir que um melhoramento nas coisas criadas indicam um melhoramento no criador? Poderia um Deus infinitamente bom, poderoso e sábio, desejando produzir o homem, tenha iniciado com as formas mais primitivas de vida; desde os mais simples organismos conhecidos que possam ser imaginados, e durante imensuráveis períodos de tempo uma melhora gradual e quase imperceptível sobre o início tosco, até chegar ao homem? Iria haver neste período, desperdício na produção de formas erradas, abandonadas depois? Pode a mente humana encontrar a mínima sabedoria sobre a terra com horrores que rastejam, que vivem da agonia e miséria dos outros? Podemos ver a propriedade da construção da terra, quando só uma pequena proporção da superfície seja capaz da inteligência humana? Quem poderá apreciar a misericórdia de se construir um mundo no qual animais devoram animais; Que toda boca seja um matadouro, e cada estômago uma tumba? Podemos encontrar infinita inteligência e amor na carnificina eterna e universal?
O que pensaríamos de um pai que desse uma fazenda a seus filhos e que antes de lhe passar a propriedade plantasse nela milhares de ervas venenosas e urtigas; que a enchesse de bestas ferozes e répteis venenosos; que colocasse nela água e insectos para que desenvolvesse malária; arranjasse a terra de tal modo que, de vez enquanto ela se abrisse e engolisse alguns dos seus filhos queridos; e além disso, colocasse também alguns vulcões nas vizinhanças que a qualquer momento derramasse rios de lava sobre seus filhos? Suponha que esse pai evitasse dizer a seus filhos quais ervas eram venenosas; nada dissesse sobre terremotos e deixasse em segredo os vulcões; consideraríamos esse pai um anjo ou demónio? E no entanto é exactamente isto que o Deus ortodoxo tem feito. De acordo com teólogos Deus preparou este globo especialmente para a habitação de seus filhos queridos, e no entanto ele encheu as florestas de bestas ferozes; colocou serpentes em cada caminho; atormentou o mundo com terremotos e adornou sua superfície com montanhas flamejantes. Apesar de tudo isto nos dizem que o mundo é perfeito; que foi projectado por um ser perfeito, e portanto, é também perfeito. No momento seguinte nos dirão estas mesmas pessoas que o mundo foi amaldiçoado; coberto com espinheiros, urtigas e espinhos, e que o homem fora condenado à doença e morte, simplesmente porque nossa querida pobre e falecida mãe comera uma fruta contrariando o comando de um deus arbitrário.
Um devoto amigo meu, tento ouvido que eu falara que o mundo é coberto de imperfeições, perguntou-me se o relato era verdadeiro. Sabendo que era, ele expressou grande surpresa que alguém fosse culpado dessa presunção. Ele afirmou que em seu julgamento seria impossível apontar uma imperfeição que seja. "Seja bom o suficiente", disse ele, "para fazer um melhoramento que seja, se você tivesse poder." "Bem", disse eu, "traria saúde para todos em vez de doenças." A verdade é, é impossível harmonizar todas essas dores e agonias com a ideia de que fomos criados, e somos supervisionados e protegidos por um Deus poderoso, benevolente e sábio, que seja superior e independente da natureza. Os sacerdotes, entretanto, compensam todas as doenças desta vida com as esperadas alegrias da próxima. Somos assegurados de que tudo é perfeição no paraíso, que seu céu não tem nuvens  que tudo é serenidade e paz. Aqui impérios podem cair; dinastias podem extinguir-se em sangue; milhões de escravos podem labutar sob os raios impiedosos do sol, e o cruel bastão dos chicotes; entretanto tudo é alegria no paraíso. Pestes podem atapetar o mundo com cadáveres dos entes queridos; os sobreviventes podem curvar-se sobre eles em agonia  entretanto a árvore plácida do céu permanece impassível. Crianças podem se esvair pedindo em vão um pedaço de pão; bebés podem ser devorados por serpentes, enquanto o sorriso impassível de Deus continua a brilhar. O inocente pode definhar no escuro das masmorras; bravos homens e mulheres heróicas podem virar cinzas na estaca do fanatismo, enquanto o céu é cheio de alegrias e música. No mar aberto, na escuridão da noite tempestuosa, os náufragos se debatem no meio das ondas implacáveis, enquanto os anjos tocam calmamente suas harpas. As ruas das cidades são cheias de doentes, deformados, desamparados; as câmaras da dor são coroadas com as pálidas formas do sofrimento, enquanto os anjinhos voam e flutuam no reino feliz onde vivem. No céu eles estão muito felizes para ter simpatia; muito ocupados cantando para ouvir as súplicas dos que sofrem. Seus olhos são cegos; suas orelhas estão tapadas e seus corações já viraram pedra pelo infinito egoísmo da alegria. O marinheiro salvo está muito feliz ao atingir os umbrais para pensar um momento nos seus irmãos que se afogam. Com a indiferença da felicidade, com o desprezo do êxtase, o céu é inatingível às misérias da terra. Cidades são devoradas pela lava; a terra se abre e milhares perecem; homens estendem suas mãos para os céus mas os deuses estão muito felizes para ajudar seus filhos. Os sorrisos das divindades não tomam conhecimento das lágrimas dos homens. Os gritos de alegria dos céus abafam os lamentos da terra. Tendo demonstrado como os homens criaram os deuses, e como eles se tornaram escravos temerosos da sua própria criação, a questão naturalmente vem à tona: Quando eles se libertarão, mesmo um pouco, desses monarcas do céu, desses déspotas das nuvens, dessa aristocracia do ar? Como eles sobrepujarão seu terror abjecto e ignorante e jogará fora os cabrestos da superstição?
Provavelmente a primeira coisa a libertar a mente do homem foi a descoberta da ordem, da regularidade, da periodicidade do universo. Com isto ele começou a suspeitar de que tudo não aconteceu puramente em referência a ele. Ele percebeu que o que quer que ele faça, os movimentos dos planetas eram sempre os mesmos; que eclipses eram periódicas, e que até cometas chegam a certos intervalos. Isto começou a convencê-lo de que eclipses e cometas nada tinham a ver com ele, e que sua conduta nada tinha a ver com esses corpos celestes. Perceberam que eles não foram feitos para o seu benefício e punição. Eles começaram então a vê-los com admiração e não com medo. Entenderam que a fome não era mandada por uma divindade enraivecida e vingativa, mas era o resultado da negligência e ignorância do homem. Compreenderam que doenças não eram causadas por espíritos maus. Viram que doenças eram causadas por causas naturais, e poderiam ser curadas por métodos naturais. Ele demonstrou, para sua satisfação pelo menos, que oração não é remédio. Descobriu, pela sua triste experiência, que seus deuses não têm qualquer utilidade prática, que nunca o ajudaram, excepto quando ele já estava apto para se ajudar a si próprio. Por fim ele começou a suspeitar de que suas acções nada tinham a ver com misteriosas aparições no céu; que era impossível para ele ser mau o suficiente para causar um vendaval, ou bom o suficiente para cessá-lo.

(continua) 

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