(continuação)
Algumas nações tomaram emprestados
os seus deuses; entre essas, somos obrigados a admitir, a nossa própria. Os
judeus, cessando de existir como país, sobrando um deus inútil, nossos
antepassados o adoptaram, assim como o seu diabo ao mesmo tempo. Este deus
emprestado permaneceu como fonte de adoração, e este diabo adoptado excita a
apreensão do nosso povo. Ainda se supõe que ele instala as suas armadilhas e
fareja com o propósito de flagrar nossas almas incautas, e ele ainda, com algum
sucesso, provoca guerras contra o nosso Deus. Para mim é fácil dispor destas
ideias a respeito de deuses e diabos. Eles são uma produção artificial. O homem
criou-os a todos, e sob as mesmas circunstâncias os criaria novamente. O homem
não só criou todos esses deuses, como criou também todo o material que os
circunda. Geralmente os deuses eram modelados a partir deles mesmos, e demos a
eles mãos, cabeças, pés, olhos, orelhas e órgãos da fala. Cada nação fez os seus
deuses falar apenas a sua própria língua. Da mesma forma, colocou na sua boca
os mesmos enganos em história, astronomia e geografia, e em todos os assuntos
que aqueles povos conheciam. Nenhum deus era mais avançado que os povos que os
criaram. Os negros representavam os seus deuses de cor escura e cabelos
crespos. Os dos mongóis tinham os olhos amendoados e a mesma tonalidade da pele.
Os judeus não se permitiam fazer pinturas dos seus; se houvesse gravuras,
veríamos um deus com face oval, e um nariz aquilino. Zeus era um perfeito
grego. E Javé, parecia até um membro do Senado romano. Os deuses egípcios
tinham o mesmo aspecto paciente e o rosto plácido que tinham as simpáticas
pessoas que os inventaram. Os deuses dos nórdicos eram representados
invariavelmente usando roupas de pele, e bem agasalhados; os dos trópicos eram
representados nus. Os deuses da Índia eram frequentemente representados sobre
elefantes; os deuses de habitantes de ilhas eram sempre bons nadadores, e os
deuses dos habitantes do ártico gostavam de óleo de baleia. Quase todos os
povos pintaram ou esculpiram representações dos seus deuses, e essas
representações eram, pelas classes mais baixas, tratadas como deuses reais,
para a imagem dos seus deuses eles dirigiam orações e sacrifícios. Em alguns
países, até nos nossos dias, se um povo, após longas orações, não tinha os seus
desejos atendidos, eles deitavam as suas imagens fora, como deuses inúteis, ou
os detratavam da maneira mais reprovável, lançando sobre eles golpes e
maldições: "Como podes agora, espírito cão", eles diziam, "nós
te alojámos num templo magnífico, adornámos-te com ouro, oferecemos-te incenso,
alimentámos-te com as nossas melhores comidas; e depois de toda esta dedicação,
recusas atender o nosso pedido?" Depois derrubavam o deus e deitavam-no
fora. Se, eventualmente depois eles obtinham o que desejavam, então, com uma
grande cerimónia, o apanhavam de volta, lavavam-no e limpavam-no, colocavam-no
de volta no seu trono, e se desculpavam pelo que haviam feito. "Na
verdade" eles diziam, "nós somos muito maus, e tu és infinito na tua
bondade. Mas o que foi feito está feito. Não pensemos mais nisto. Se esqueceres
o que aconteceu, nós te devolveremos o brilho novamente." O homem nunca
sofreu falta de deuses. Ele adorava quase tudo, inclusive os seres mais
repugnantes. Ele tem adorado o fogo, a terra, o ar, a água, a luz, estrelas, e
por centenas de anos, ele se tem curvado diante de serpentes. Povos selvagens
têm feito sacrifício para objectos que eles recebiam dos civilizados. Os Todas
adoravam um chocalho de vaca. Os Kotas adoravam duas placas de prata, que eles
consideravam como sendo marido e mulher. O homem, sendo sempre fisicamente
superior à mulher, torna compreensível por que a maioria dos deuses são do sexo
masculino. Se fosse o contrário, o responsável pelas forças da natureza seria
mulher e, em vez de representados com armas masculinas, seriam adornados com
colares, vestidos e usariam cabelos longos. Nada tem sido mais claro que o facto
de todas as nações terem dado aos seus deuses as suas próprias características,
e que cada indivíduo dá a seu deus suas próprias peculiaridades. O homem não
tem qualquer ideia além daquelas sugeridas pelo seu ambiente. Ele não pode
conceber nada completamente diferente de tudo o que ele vê e sente. Ele pode
exagerar, aumentar, diminuir, combinar, separar, melhorar, multiplicar,
embelezar, deformar e comparar o que ele vê, sente e ouve, e tudo de que ele
toma conhecimento através de seus órgãos dos sentidos; mas ele não pode criar.
Vendo exposição de força ele pode dizer, omnipotente. Tendo vivido, ele pode
dizer, imortalidade. Sabendo algo sobre o tempo, ele pode dizer, eternidade.
Concebendo algo de inteligente, ele diz, Deus. Vendo exibições de maldade, ele
diz, diabo. Um pouco de felicidade caindo nas suas vidas, e ele diz, céu. Dor,
sob suas mais diferentes formas, ao experimentar ele diz, inferno. Na verdade
todas estas ideias têm um fundamento em factos, e só um fundamento. Tudo se
limita a um exagero, diminuição, combinação, separação, combinação, deformação,
embelezamento, melhoramento, ou multiplicação da realidade, de modo que a
construção não é nada mais que o agrupamento incongruente de tudo aquilo que é
percebido pelos órgãos dos sentidos. É como se déssemos a um leão as asas de
uma águia, os chifres de um búfalo, a cauda de um cavalo, a sacola de um
canguru, o tronco de um elefante. Nós então criamos na imaginação um monstro
impossível, e na verdade, as diferentes partes desse monstro de facto existem.
Assim é com todos os deuses que o homem fez. Além da natureza, o homem não pode
ir nem em pensamento -- ou acima da natureza ele não pode ir -- abaixo da
natureza ele não pode descer. O homem, na sua ignorância, supõe que todos os
fenómenos são produzidos por uma força inteligente, e com directa referência a
ele. Preservar relações amigáveis com essas forças, sempre foi e tem sido o
objectivo de todas as religiões. O homem se ajoelha de medo e implora ajuda, ou
faz isso em gratidão a algum favor que ele supõe que lhe foi dado. Ele procura,
através da súplica, acalmar algum ser que, por alguma razão, crê ele, está
enraivecido. Os relâmpagos e trovões o assustam. Na presença de um vulcão ele
se ajoelha. As grandes florestas, cheias de animais selvagens, com serpentes
enormes enroscando-se nas suas profundezas, o mar profundo, os cometas, os
eclipses sinistros, a assustadora calma das estrelas, e mais que tudo, a
perpétua presença da morte, o convenceram de que o homem era o passatempo e a
presa de forças malignas. As estranhas e assustadoras doenças que o afligiam,
os calafrios e a febre, as contracções da epilepsia, as paralisias súbitas, a
escuridão da noite, e os sonhos terríveis, fantásticos e selvagens que enchem a
sua mente convenceram-no de que era assombrado por numerosos espíritos e
diabos. Por alguma razão supôs que alguns desses espíritos diferiam em poder --
que nem todos eram igualmente malevolentes -- que os mais elevados controlavam
os mais baixos, e que nossa sobrevivência dependia de ganhar assistência dos
mais fortes. Por esta razão, ele decidia rezar, agradar, adorar e oferecer
sacrifícios. Estas ideias parecem ser quase universais no homem incivilizado. Por
muito tempo todos os povos supunham que os loucos e doentes eram possuídos por
espíritos maus. Por muitos anos a prática da medicina consistia em expulsar
esses demónios. Usualmente o sacerdote procurava fazer o máximo de barulho
possível. Eles sopravam trombetas, batiam em tambores, agitavam chocalhos, e
emitiam gritos terríveis. Se os remédios ruidosos falhassem, eles imploravam
pela ajuda de outros espíritos mais poderosos. Pacificar os espíritos era
considerado de fundamental importância. Os pobres bárbaros, sabendo que os
homens poderiam ser dominados por venenos, davam aos espíritos aquelas
substâncias que consideravam de maior valor. Com o coração partido eles
entregavam aos espíritos o sangue de seus filhos. Era para eles impossível
conceber um deus totalmente diferente deles próprios e eles acreditavam que
essas forças do ar poderiam ser afectadas um pouco pela visão de tão profunda
tristeza. Foi com os bárbaros, assim como com os civilizados agora -- que uma
classe vivia através da mercantilização do medo dos outros. Certas pessoas se
colocavam na função de acalmar os deuses, e a instruir os outros sobre seus
deveres para com esses seres invisíveis. Isto foi o início dos sacerdotes. Eles
fingiam colocar-se entre a crueldade dos deuses e o desamparo do homem. Eram os
advogados humanos na corte do céu. Eles carregavam ao mundo invisível a
bandeira da trégua, do protesto, do requerimento. Eles voltavam com a
autoridade, o comando e a força. Os homens ajoelhavam-se diante dos seus
próprios servos, e o sacerdote, obtendo vantagem das suas acções inspiradas
pela sua suposta influência com os deuses, fazia dos seus semelhantes uns
hipócritas rastejantes e uns escravos. Até Cristo, um suposto filho de um deus,
ensinava que as pessoas eram possuídas por demónios, e frequentemente, de
acordo com os relatos, dava provas da sua divina origem e missão, assustando
multidões de demónios para fora dos seus infelizes concidadãos. Expulsar
demónios era a sua principal função, e os demónios expulsos geralmente
aproveitavam a situação para reconhecê-lo como verdadeiro messias; o que não
era muito conveniente para eles, mas que o beneficiava.
(continua)