No belo solar dos Alarcão e Silva
a azáfama era enorme contrastando com a monotonia dos dias normais. Neste dia
casavam a sua jovem e virgem filha Isabel, uma linda rapariga de 19 anos que
frequentava ainda a faculdade de direito. Maria Eduarda Menezes de Alarcão e
Silva corria por toda a casa dando ordens aos criados para que tudo estivesse
preparado. Passou pelo salão onde um copo-de-água sumptuoso estava pronto.
Olhou para as mesas e não resistiu a dar os seus próprios toques, alterando o
local de um castiçal aqui uma terrina de Sèvres ali, esticando um laço das
camilhas acolá. Verificou os arranjos de mariscos e ficou satisfeita por olhar
o trabalho artístico que, o melhor restaurante da cidade, tinha realizado. As
mesas postas com um belo e antiquíssimo serviço Vista Alegre alternando com uns
jarrões de Sèvres Luís XV, quase não tinham espaço por tanto cristal e faqueiro
de prata. Satisfeita com o que vira retirou-se para o seu sumptuoso quarto,
indo encontrar seu marido, Zeferino Ezequiel Monteiro de Alarcão e Silva, às
voltas com o peitilho engomado do fraque. – Querida, ajude aqui com este
peitilho. Não sei o que tem, ontem estava bom, hoje teima em encaracolar.
Maria Eduarda, com todo o
carinho, endireitou o peitilho do marido ao mesmo tempo que lhe verificava as
asas do fraque. – Meu querido, você está elegantérrimo. Vai ser o homem mais
charmoso do casamento. Veja se não se amachuca muito durante a missa para
depois aqui, no copo-de-água, estar impecável.
– Olhe querida, é melhor ir ver o
que se passa com a nossa filha pois lá em cima está a costureira, o
cabeleireiro, a manicura e o fotógrafo. Sei que é da praxe a noiva chegar
sempre um pouco atrasada, mas convém não exagerar. Já ouvi os carros que
entraram no jardim e já devem estar a chegar à porta. Antes de sair diga ao
José que a orquestra deve estar a chegar e que liberte o salão grande para se
poder dançar.
Pouco depois, a noiva,
esplendorosa no seu vestido branco, segurando o seu ramo de flores de
laranjeira, descia a escadaria da mansão sorrindo para os seus pais que no
átrio juntamente com os convidados aguardavam ansiosos o divinal aparecimento.
Os fotógrafos disparavam as suas câmaras e seguiam-na com as máquinas de vídeo.
Descer a escadaria da porta principal demorou imenso por via de foto daqui
vídeo de acolá. Meteram-se todos nos carros e o cortejo arrancou com o carro da
noiva no fim. Este carro, um Rolls Royce Phantom, preto de brilho impecável,
arrancou como se tivesse rodas de veludo não se ouvindo qualquer ruído do
motor.
A igreja estava completamente
engalanada com ramos de rosas brancas e passadeira vermelha. Na galeria
superior um coro de donzelas, como que embaladas em tules brancos e rosa,
entoava melodiosos cânticos. As senhoras nos seus elegantes e caríssimos
vestidos de cerimónia e chapéus altamente sofisticados, olhavam-se entre si não
perdendo pitada do que as outras vestiam fazendo comparações quase sempre
negativas em relação aos trajes próprios.
À porta, Manuel Lencastre Azevedo
de Tordesilhas e Faria, esperava ansioso a sua amada. Na espera, recordava como
se tinham conhecido, como se apaixonara, como aceitara um namoro não muito
prolongado mas casto, pois a moça, muito católica e temente a Deus, não
aceitava mais do que simples beijos que o deixavam louco. Dizia ela que depois
de casados, teriam muito tempo para se entregarem um ao outro gozando das
delícias de um sexo consentido e aprovado por Deus.
O cortejo chegou. Os convidados
tomaram lugar na fila em frente aos convidados do noivo. A noiva saiu e Zeferino
conduziu a filha ao altar ao som da marcha nupcial de Lohengrin de Richard
Wagner e entregou-a a Manuel que lhe estendeu as mãos. Ao fim de quase duas
horas de missa com cânticos, homilia, eucaristia e leitura de textos do novo testamento, os
noivos saíram sob o olhar lacrimoso dos convidados. Após as fotografias
dirigiram-se todos aos carros e o cortejo dirigiu-se à Mansão dos Alarcão e
Silva. O dia estava soalheiro e a temperatura amena. Seguiu-se uma prolongada
sessão, nos jardins, de fotografias e gravações de vídeo após o que todos se
dirigiram ao palacete. Uma orquestra de dois violoncelos, seis violinos, dois
clarinetes, um oboé e uma flauta recebeu as perto de trezentas pessoas ao som
da Pavane de Gabriel Fauré.
Todos se dirigiram às mesas
rodeando-as à procura dos seus nomes e mantiveram-se de pé até que os noivos se
sentassem na mesa principal com os respectivos pais e padrinhos. Alarcão e
Silva fez um gesto e o mordomo José acenou recatadamente para a porta que
servia de copa. Um cortejo de empregados de jaquetas brancas com um estreito
galão dourado e calças pretas, desfilou trazendo equilibradas grandes bandejas
com toda a espécie de iguarias. O grande banquete começou. Do salão vinha quase
em surdina o som da orquestra que tocava música clássica.
À medida que a comida ia sendo
servida o vinho ia escorrendo das garrafas decantadoras. Brancos e tintos das
mais diversas e prestigiadas castas desapareciam pelas gargantas dos
convidados. Os peitilhos engomados começavam a querer sair debaixo dos fraques,
laços e gravatas tinham tendência a desapertar-se, as vozes, de início tão em
surdina, começavam a fazer-se ouvir em tons mais elevados não deixando quase
perceber a orquestra que continuava a tocar Mozart e Bach. Os noivos pouco
comeram e trocavam olhares lânguidos como a antever a oportunidade de ficarem
sós, o que parecia nunca mais chegar. Entretanto chegou esbaforido, o irmão de
Zeferino pedindo muitas desculpas pelo atraso, mas a sua namorada estivera de
serviço ao banco e por via de um acidente ficara retida na urgência.
João António Jorge de Alarcão e
Silva era dez anos mais novo que Zeferino e foi sempre tratado pelos pais como
o “menino” que eles já não esperavam. Foi sempre um doidivanas e apesar de
esperto e inteligente, por via das garotas e noitadas, não acabara a faculdade
tendo arranjado um emprego mixuruca no hospital onde conhecera Sara que agora o
acompanhava. Sara era enfermeira e uma rapariga moderna, desinibida e adepta do
amor livre sem preconceitos. Conhecera João António, e o moço alto, ginasticado
e bonitão não lhe escapou. Zeferino, convidara-o para o casamento da filha,
sempre na esperança que ele nem aparecesse. Assim não aconteceu. João António
não tinha fraque e nem se lembrou de alugar um. Vestiu um velho smoking já um
pouco coçado, que o irmão lhe dera, e acompanhado por Sara vestida com blusa
Lamé dourado e mini-saia preta brilhante, que deixava ver um par de pernas
divinal. Os sapatos eram de saltos tão altos que quase a faziam da altura do
acompanhante A chegada deste casal alterou completamente o ambiente, os homens
reviraram-se nas cadeiras deitando olhos gulosos às pernas da acompanhante de
João António, as senhoras quase se benziam ao mesmo tempo que comentavam entre
si o ar desmazelado do irmão de Zeferino, enquanto as moças solteiras e
casadoiras olhavam com ar dengoso o bonitão que tinha chegado estando-se nas
tintas para o seu traje. Ao mesmo tempo os olhares destas para Sara eram de
inveja pura.
Ocuparam os dois lugares livres à
frente dos pais da noiva, que lhes estavam destinados, e começaram a comer um
pouco à pressa para não fazerem esperar os convidados. Pouco depois, após os
cafés, os brandy’s e os whisky’s, os convidados levantaram-se dirigindo-se para
o salão onde a orquestra os recebeu com a marcha nº 1, de Elgar, Pompa e
Circunstância. Depois das palmas a orquestra iniciou uma série de valsas de
Johann Strauss Jr.
Os noivos abriram o baile e
depois de umas voltas foram acompanhados por aqueles que ainda se sentiam
capazes de dançar. João António e Sara tentaram dançar a valsa, mas não se
entenderam acabando a rir pelo total falta de jeito dos dois. Entretanto a orquestra
mudou para uma série de tangos que foram aproveitados pelos mais velhos. A
moçada nova começou a ficar entediada e foi-se esgueirando para as mesas.
João António disse a Sara: – Vou
dar uma volta nisto. Pegou no telemóvel e marcou um nº:
– Manel, daqui é o João. Estou aqui num
casamento, mas estes gajos são uns botas de elástico que só tocam música de
enterro para cotas e a rapaziada nova até já está a pensar em dar o salto para
outras bandas mais animadas. Era chato para o meu irmão. Lembrei-me que
poderias estar disponível e se tivesses o material na carrinha, poderias dar
aqui um salto e animar isto, podes? Óptimo, traz a Rita contigo e ela que venha
preparada para cantar aquelas brejeirices que ela sabe. Combinado? Meia-hora?
Boa! Cá te espero na casa do meu irmão.
Passada meia-hora, o Manel e a
Rita, transportando a sua pianola, faziam entrada no salão pedindo ajuda para
que lhes trouxessem da carrinha o amplificador e duas grandes colunas de som.
João António dirigiu-se ao maestro e falou-lhe ao ouvido após o que todos os
músicos deixaram a sala.
Perante o olhar atónito dos
convidados, Manel montou o material e experimentou uma nota que ia rebentando
os tímpanos da assistência. Quando achou que tudo estava bem, meteu uma cassete
de acompanhamento e começou a tocar cantando:
…
E toda malta gritou/ Até o padre ajudou/ Aperta, aperta com ela/ A
banda sempre a tocar /O Povo todo a cantar/ Aperta, aperta com ela /Nós
apertamos os dois/ Então aí é que foi /Aperta, aperta com ela/ Assim amor pois
então /Começou nossa paixão /Nesse baile de verão. (original de José Malhoa)
…
Maria Eduarda, abriu a boca e não
a consegui fechar. O Conde Vasconcelos de Atahide, que estava em pé, deu meia
volta tão depressa que tropeçando na bengala, estatelou-se caindo com a cara no
decote da D.ª Ermengarda Perestrelo, deixando cair o monóculo no exagerado
decote, o que a fez soltar um estridente berro ao mesmo tempo que corava até às
orelhas pelo “porra” bem audível que o Conde vociferou. Zeferino procurava o
irmão tentando ver se através dele conseguia por cobro a tal blasfémia. Como
não o vislumbrou no salão dirigiu-se à sala do copo-de-água, mas foi
praticamente atropelado pela moçada nova que correndo saltou para o salão rindo
e dançando ao som daquela música “pimba”.
Entretanto o Manel mudou a cassete e a Rita cantou:
…
Meu amor trabalha muito
precisa de comer
…
preparo um pacote,
ponho de tudo um bocadinho
…
Eu levo no pacote
Ai eu levo, sim senhor!
Eu levo no pacote
Aí, tem outro sabor!
…
Eu levo no pacote
Pra gosto do meu amor!
(original de Rosinha)
…
A rapaziada exultava e ria,
dançando e pulando. As raparigas puxavam os vestidos compridos prendendo-os na
cintura mostrando as pernas. Aí a velharia, já com os vapores do álcool,
começou a animar. Os rapazes despiram os fraques e arregaçaram as mangas das
camisas.
Entretanto, a Viscondessa de Valmor,
era abanada com o leque pela Baronesa de Aragão, enquanto o Barão lhe chegava
ao nariz o frasco dos sais. Zeferino estava branco como a cal e mais branco
ficou quando viu o seu genro levantar-se, pegar na mão da sua filha levando-a
até meio do salão começando a dançar. A Senhora de Orleães e Gonzaga, rezava o
terço ao mesmo tempo que erguia os olhos ao céu, como se pedisse perdão a Deus
por os seus ouvidos estarem expostos a tais cânticos.
Entretanto, o Manel agora
cantava:
…
Chupa Teresa!
Chupa Teresa!
Qu'este gelado gostoso,
É feito de framboesa!
Há gelado de morango
Baunilha e abacaxi
As garotas do meu bairro
Vêm todas chupar aqui!
(original de Quim
barreiros)
Aí as risadas eram gerais. Até os
velhotes riam a bom rir, alguns menos timoratos entraram na marcha com os
rapazes e raparigas. As senhoras mais velhas saíram do salão e foram para o
jardim apanhar ar comentando o escândalo.
No salão a música continuava com
a Rita a cantar:
…
Meu amor gosta de
comer
E gosta de variar de
prato
…
Uma amêijoa
suculenta
Para abrir a
refeição
Ele gosta de
saborear
…
Eu lavo a amêijoa
para o meu amor comer
Eu lavo a amêijoa
para ele se lambuzar
Eu lavo a amêijoa e
tenho que lavar
Para lhe poder tirar
todo aquele gostinho a mar
(original de
Rosinha)
…
A festa agora estava
no auge. Tanto a rapaziada como os convidados mais bebidos e desinibidos
dançavam e faziam marchas dando grandes risadas e cantando fazendo coro com a
Rita. Foi então que Maria Eduarda foi até junto da ruidosa aparelhagem e
desligou a ficha. Depois foi junto de João António e pediu-lhe para sair juntamente
com a namorada.
Os convidados
começaram a sair e os Alarcão e Silva desculpavam-se como podiam. Alguns diziam:
– Deixe lá. Olhe que até foi giro e
divertido. A animação foi muita. Ao que Maria Antónia respondia agastada: – Animação? Diria antes, humilhação. Nunca me senti
tão mal na minha vida.
Entretanto, os
noivos, já em casa, por terem saído à socapa quando aquilo deu para o torto,
beijavam-se ternamente. Já de roupão, depois de saírem da casa de banho, Manuel
de Lencastre, abraçando aquela que já era sua mulher, dizia-lhe ao ouvido: – Aquilo foi giro e teve o mérito de teres aprendido
alguma coisa. A propósito! Temos ameijoa para a ceia.