(Excerto do livro autobiográfico "O Lagarto)
…
O
Capitão era exímio a construir papagaios de papel. Ficara-lhe da juventude
quando com canas e folhas de jornal mais cola feita de farinha e vinagre,
sujava a casa toda à mãe a elaborar estrelas com longos rabos que depois ia
lançar para as serras acompanhado dos amigos. O papagaio acabava sempre objecto
de fisgadas certeiras sendo implacavelmente abatido como avião inimigo. No dia
seguinte lá se ia chatear novamente a Mãe para disponibilizar mais farinha e
vinagre e outro papagaio era elaborado com feitio diferente que, coitado,
acabava de igual maneira abatido pela artilharia aliada.
Já
pai, lera num jornal em Angola que iria haver um concurso de papagaios
organizado pela mocidade portuguesa. Naquela época o militar, como quase todo o
cidadão, andava muito afastado da política e o Salazar, não sendo do seu
agrado, não interferia muito na sua vida se exceptuarmos o facto de, por ele,
estar destacado em Angola em missão de soberania. Dever era dever e ali estava.
Ao
ler aquilo, as reminiscências da infância trouxeram-lhe novamente a vontade de
construir um papagaio. Aliciar o filho para o concurso foi fácil. O rapaz ficou
entusiasmado e prestou-se a ajudar o pai na construção. Assim se fez.
Compraram-se vários papéis coloridos, arranjaram-se os restantes materiais de
construção, copiou-se um modelo de um livro infantil e várias horas foram
gastas num fim-de-semana na construção do papagaio. Saiu obra-prima. Decorado
com figuras astronómicas, luas, sóis, cometas, saturnos, etc. e com um “design”
nunca antes visto, lá se foi em tarde ventosa experimentar as capacidades de
ascensão do objecto voador. Com bom vento subiu a bom subir para contentamento
do rapaz e do pai que correu pressuroso a inscrever o filhote no concurso
anunciado. Pois… tudo muito bonito, mas o rapaz só podia concorrer se fosse
fardado. Aí as coisas complicaram-se. O militar, que no seu início de estudante
e antes de entrar nos Pupilos do Exército, tinha andado um ano no liceu, nunca
tinha adquirido a farda da mocidade, e disso tinha escapado, agora teria de
vestir ao puto a horrorosa farda da “bufa” como a organização era conhecida.
Grande dilema e, ainda por cima o puto não queria de maneira nenhuma vestir tal
coisa. E agora? Então um papagaio tão bonito e que tinha dado tanto trabalho
não iria concorrer?
Após
conferência familiar lá se convenceu a criança que era só por umas horas e a
farda, emprestada para o efeito, seria despida e nunca mais utilizada. Contrariado
o rapaz lá condescendeu e foi ao concurso.
O
papagaio foi um sucesso. Ganhou os dois primeiros prémios de beleza e
criatividade. Só que, para grande tristeza, estava pouco vento e o papagaio,
enorme, custou a elevar-se e, no alto, não permaneceu muito tempo. Outros,
menos bonitos, mas mais leves evoluíram muito melhor e arrebataram os primeiros
prémios. Mas as duas taças foram para casa e mostradas aos amigos com muito
orgulho.
Bastantes
anos depois, após 25 de Abril, o rapaz mostrava aos amigos as taças e a foto
fardado, dizendo no gozo: – Vêem!... Como eu também pertenci à “bufa”!
Ainda
em Luanda, um outro papagaio enorme e em tecido de pára-quedas, foi construído.
Pai e filho deliciaram-se, no morro da samba, a evoluir com o dito, munidos de
luvas para defender as mãos dos cortes que poderiam ser provocados pelos fios
devido à força que o vento lhe imprimia.
Ainda
hoje, já reformado, muito mais sensato, mas ainda com reminiscências de
infância, o militar se entretém com papagaios de compra muito mais evoluídos,
na praia, a imprimir aos ditos evoluções artísticas para gáudio de putos e não
só. Nesses momentos, as recordações e o concurso da “bufa” repovoam-lhe a
memória. Mas, hoje não teria convencido o filho a “paramentar-se” com tal
vestimenta. Os tempos mudam-nos o pensamento. Nem o elegante e bonito papagaio
se teria sobreposto a tão nefando atavio.
Belo relato. Papagaios (na minha meninice distinguíamos os papagaios das estrelas)! Que saudades este escrito me fez deles!
ResponderEliminarPor lapso, emiti o anterior comentário com outro meu endereço, o do condomínio do meu prédio. As minhas desculpas.
ResponderEliminarÉ certo que desde essa época dos papagaios até hoje, já muita coisa evoluiu... e agora estaríamos a transpor essa epopeia da nossa meninice, para o advento dos "drones"... Claro que perderia toda a poesia e magia de outrora e também a "bufa" não poderia ser replicada num episódio desses, nos nossos dias! Nesses tempos idos a simplicidade, que por vezes envolvia aturados esforços de construção artesanal, era realmente um hino à imaginação e criatividade... Hoje em dia, a tudo isso chama-se tecnologia e compra-se nas grandes superfícies ou encomenda-se on-line!... Mudam-se os tempos... mudam-se as verdades, que actualmente são progressos e não tanto vontades...
ResponderEliminarNão sei porquê, mas vejo nessa personagem do Capitão, traços inegáveis de um bom amigo meu, hoje Coronel reformado, que apesar de militar, sempre terá flutuado nos ventos de todo o tempo, mesmo até hoje, num mundo de sonho e de uma infância nunca perdida, que o faz ser uma pessoa muito especial, na sua sensibilidade e permanente vontade de viver...
Meu Caro Balsa. Já o disse, mais de uma vez, vale a pena escrever para obter os teus comentários. O que dizes é bem verdade, quando recordo estes episódios volto ao meu tempo de criança e sinto-me muito bem e isso dá-me anos de vida.
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