sábado, 4 de fevereiro de 2017

Pagaios de papel

(Excerto do livro autobiográfico "O Lagarto)

O Capitão era exímio a construir papagaios de papel. Ficara-lhe da juventude quando com canas e folhas de jornal mais cola feita de farinha e vinagre, sujava a casa toda à mãe a elaborar estrelas com longos rabos que depois ia lançar para as serras acompanhado dos amigos. O papagaio acabava sempre objecto de fisgadas certeiras sendo implacavelmente abatido como avião inimigo. No dia seguinte lá se ia chatear novamente a Mãe para disponibilizar mais farinha e vinagre e outro papagaio era elaborado com feitio diferente que, coitado, acabava de igual maneira abatido pela artilharia aliada.
Já pai, lera num jornal em Angola que iria haver um concurso de papagaios organizado pela mocidade portuguesa. Naquela época o militar, como quase todo o cidadão, andava muito afastado da política e o Salazar, não sendo do seu agrado, não interferia muito na sua vida se exceptuarmos o facto de, por ele, estar destacado em Angola em missão de soberania. Dever era dever e ali estava.
Ao ler aquilo, as reminiscências da infância trouxeram-lhe novamente a vontade de construir um papagaio. Aliciar o filho para o concurso foi fácil. O rapaz ficou entusiasmado e prestou-se a ajudar o pai na construção. Assim se fez. Compraram-se vários papéis coloridos, arranjaram-se os restantes materiais de construção, copiou-se um modelo de um livro infantil e várias horas foram gastas num fim-de-semana na construção do papagaio. Saiu obra-prima. Decorado com figuras astronómicas, luas, sóis, cometas, saturnos, etc. e com um “design” nunca antes visto, lá se foi em tarde ventosa experimentar as capacidades de ascensão do objecto voador. Com bom vento subiu a bom subir para contentamento do rapaz e do pai que correu pressuroso a inscrever o filhote no concurso anunciado. Pois… tudo muito bonito, mas o rapaz só podia concorrer se fosse fardado. Aí as coisas complicaram-se. O militar, que no seu início de estudante e antes de entrar nos Pupilos do Exército, tinha andado um ano no liceu, nunca tinha adquirido a farda da mocidade, e disso tinha escapado, agora teria de vestir ao puto a horrorosa farda da “bufa” como a organização era conhecida. Grande dilema e, ainda por cima o puto não queria de maneira nenhuma vestir tal coisa. E agora? Então um papagaio tão bonito e que tinha dado tanto trabalho não iria concorrer?
Após conferência familiar lá se convenceu a criança que era só por umas horas e a farda, emprestada para o efeito, seria despida e nunca mais utilizada. Contrariado o rapaz lá condescendeu e foi ao concurso.
O papagaio foi um sucesso. Ganhou os dois primeiros prémios de beleza e criatividade. Só que, para grande tristeza, estava pouco vento e o papagaio, enorme, custou a elevar-se e, no alto, não permaneceu muito tempo. Outros, menos bonitos, mas mais leves evoluíram muito melhor e arrebataram os primeiros prémios. Mas as duas taças foram para casa e mostradas aos amigos com muito orgulho.
Bastantes anos depois, após 25 de Abril, o rapaz mostrava aos amigos as taças e a foto fardado, dizendo no gozo: – Vêem!... Como eu também pertenci à “bufa”!
Ainda em Luanda, um outro papagaio enorme e em tecido de pára-quedas, foi construído. Pai e filho deliciaram-se, no morro da samba, a evoluir com o dito, munidos de luvas para defender as mãos dos cortes que poderiam ser provocados pelos fios devido à força que o vento lhe imprimia.


Ainda hoje, já reformado, muito mais sensato, mas ainda com reminiscências de infância, o militar se entretém com papagaios de compra muito mais evoluídos, na praia, a imprimir aos ditos evoluções artísticas para gáudio de putos e não só. Nesses momentos, as recordações e o concurso da “bufa” repovoam-lhe a memória. Mas, hoje não teria convencido o filho a “paramentar-se” com tal vestimenta. Os tempos mudam-nos o pensamento. Nem o elegante e bonito papagaio se teria sobreposto a tão nefando atavio.

4 comentários:

  1. Belo relato. Papagaios (na minha meninice distinguíamos os papagaios das estrelas)! Que saudades este escrito me fez deles!

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  2. Por lapso, emiti o anterior comentário com outro meu endereço, o do condomínio do meu prédio. As minhas desculpas.

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  3. É certo que desde essa época dos papagaios até hoje, já muita coisa evoluiu... e agora estaríamos a transpor essa epopeia da nossa meninice, para o advento dos "drones"... Claro que perderia toda a poesia e magia de outrora e também a "bufa" não poderia ser replicada num episódio desses, nos nossos dias! Nesses tempos idos a simplicidade, que por vezes envolvia aturados esforços de construção artesanal, era realmente um hino à imaginação e criatividade... Hoje em dia, a tudo isso chama-se tecnologia e compra-se nas grandes superfícies ou encomenda-se on-line!... Mudam-se os tempos... mudam-se as verdades, que actualmente são progressos e não tanto vontades...
    Não sei porquê, mas vejo nessa personagem do Capitão, traços inegáveis de um bom amigo meu, hoje Coronel reformado, que apesar de militar, sempre terá flutuado nos ventos de todo o tempo, mesmo até hoje, num mundo de sonho e de uma infância nunca perdida, que o faz ser uma pessoa muito especial, na sua sensibilidade e permanente vontade de viver...

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    1. Meu Caro Balsa. Já o disse, mais de uma vez, vale a pena escrever para obter os teus comentários. O que dizes é bem verdade, quando recordo estes episódios volto ao meu tempo de criança e sinto-me muito bem e isso dá-me anos de vida.

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