quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

O Piolho



(Capítulo publicado no Boletim da APE nº 207/07, de um "livro" autobiográfico O Lagarto)

O bicho subia pelo cabelo com alguma dificuldade. A subida era difícil por escorregadia. O excesso de brilhantina não ajudava. Após muito esforço chegou ao cimo e tentou passar para outro cabelo. A distância era grande. O redemoinho no alto da cabeça afastava os cabelos qual rodopiar de carrossel. Como não conseguiu passar resolveu descer de novo. O rapaz não tirava os olhos do puto que, genuflectido à sua frente, era portador daquela bicheza. A mãe já lhe havia dito que nas escolas se apanhavam bichos daqueles, que era uma porcaria, que só os ciganos e os que não tomam banho é que têm. Como pode? Tão bem vestidinho que o puto estava, fato e gravata, fatinho azul-escuro. Normalmente, nas terras pequenas, as mães faziam gosto que os seus filhos fossem à missa com o fatinho de “ver-a-deus”, mas esqueciam-se de lhes dar banho ou o orçamento caseiro não lhes dava para tal e mais vale uma alma lavada do que o corpo, esse não vai para o céu. O piolho, parece que era este o nome do bicho, tentou subir outra vez e caiu desamparado. O rapaz tocou suavemente o cotovelo da rapariga a seu lado. A moça olhou para onde o dedo do rapaz apontava. Ao ver os esforços do pobre piolho, tentou parar o riso com a mão na boca e este saiu-lhe pelo nariz e com bastante ruído. O rapaz não se conteve e o riso estoirou ruidosamente apesar dos esforços titânicos para o conter. O riso é assim, quanto mais se contem mais ele teima em prolongar-se. E quando as pessoas olham umas para as outras, como cúmplices, ainda é pior. Os crentes, despertados das suas preces, já olhavam com olhos furibundos pelo sacrilégio. Uma igreja não é local para aqueles despautérios, estes miúdos não respeitam nada nem ninguém, nem tomam atenção à missa, como se alguém tomasse, era dita em latim, e dessa língua só os padres percebiam. O padre, do cimo do altar, fuzilou-os com o olhar e ordenou que saíssem da sua igreja. E agora? Era domingo de Páscoa! A Dª Eduarda, sua professora e catequista, tinha andado a prepará-lo para a comunhão solene, queria que ele brilhasse, queria-o na missa todos os domingos e ele que gostava tanto dela não a contrariava.
A professora era pequenina, não muito bonita, mas jeitosa. O marido era um também pequenino, mas com cara de macaco. O rapaz andava completamente apanhado pela atenção que a Dª Eduarda lhe dava. Ela tinha no rapaz grande esperança. Queria que ele fosse o melhor. Andava a prepará-lo para três exames ao mesmo tempo, 3.ª, 4.ª classes e admissão aos liceus, prova considerada muito difícil e que exigia muito do rapaz. Depois de todos saírem ele ficava mais duas horas. Era dessas horas que mais gostava, tinha a professora só para ele. Ela sentava-se na carteira a seu lado, a sua proximidade dava-lhe sensações de arrepio deliciosas. O moço esforçava-se por apreender tudo o que ela lhe ensinava. Poderia ser que assim ainda gostasse mais dele.
Agora, enquanto percorria rapidamente a nave central da velha igreja em direcção à porta, não fosse o padre irar-se e dar-lhe com o hissope na cabeça ou com o turíbulo nas canelas, perguntava-se como iria comer as amêndoas que sempre se distribuíam aos domingos de Páscoa. Maldito puto que tinha de levar um piolho para a igreja e postar-se mesmo na sua frente. O que vale é que saiu com a Mariana e ela era bem gira e dava muita bola. Já tinham andado nas dançariquices, lá no clube onde o pai era director. Apesar de ainda muito novos já dançavam muito bem e aproveitavam para se apertarem e roçarem. Assim se iam descobrindo sensualidades e anatomias escondidas.
Logo que saíram a porta, o rapaz levando a rapariga pela mão correu à volta da Igreja encaminhando-a para o átrio da sacristia, lugar resguardado das vistas de quem passava. Encostou-a à parede, junto da porta, pegando-lhe nas mãos com os dedos entrelaçados, e baixando-as de modo a conseguir encostar-se o mais possível. A moça ficou totalmente presa, mas não se mostrou incomodada. O rapaz beijava-a na cara e no pescoço roçando-lhe os lábios com os seus provocando-lhe risinhos nervosos, mas ela ia consentindo naquela volúpia que a percorria com sensações já não completamente estranhas. Com o encosto sentia-lhe o peito bastante desenvolvido para a idade. O rapaz pensava como seria bom fazer aquilo com a Dª Eduarda…Ah! Se pudesse…enquanto pensava na sua professora aproveitava a anatomia da Mariana. Estava ele a meter a mão por trás dela a caminho sabe-se lá onde, quando uma voz os fez saltar…era o safardana do sacristão que tinha aberto a porta da sacristia sem eles darem por isso. Pudera, naquela situação não se vê nada em volta…
– Que é isto? Já daqui para fora seus malandros. Vou fazer queixa ao padre, seus safadinhos. – O sacristão era coxo e tinha os olhos tortos. Metia medo ao susto. Tipo completamente execrável, bufo, misógino e completamente assexuado. Era unha com carne com o padre que dele se servia para estar a par dos mexericos da terra e dos pecadilhos dos paroquianos.
Correram desalmadamente rindo ao mesmo tempo da situação e do susto. O rapaz convenceu a moça a voltarem para a igreja, a missa já devia ter terminado e o padre já nem se lembraria deles nem da risota por causa do piolho. Assim fizeram dirigindo-se à bandeja das amêndoas que uma das velhas beatas de sacristia empunhava ainda cheia apesar das mãos ávidas que a rodeavam. O rapaz tinha a certeza que era aquela bandeja e não a fé que enchia de jovens a igreja nos domingos de Páscoa Os doces, para quem raramente os provava, eram mais atractivos do que as muito chatas e desenxabidas homilias do padre da paróquia.
A moça ainda apresentava na face o rubor das deambulações amorosas. O rapaz já só pensava o que lhe diria a professora, na escola, sobre o que se passara durante a missa. Fazia votos para que o sacristão nada dissesse ao padre pois este certamente iria meter tudo nos ouvidos da Dª Eduarda.
Quando, no primeiro dia de aulas após as curtas férias, chegou à escola, ia receoso. A professora olhou para ele quando a cumprimentou, mas nada disse. O dia passou sem problemas. Quando os outros saíram, a professora já ao lado dele, perguntou-lhe o que fora aquilo durante a missa de Páscoa. O rapaz contou-lhe do piolho e como não tinham conseguido conter o riso. Que o desculpasse, mas nunca tinha visto um piolho a fazer acrobacias como um artista de circo. Acabaram os dois a rir. Felizmente sobre o que se passara na porta da sacristia nada foi referido. O rapaz ficou contente e ao mesmo tempo todo orgulhoso por a sua professora, tão querida, lhe ter perdoado o sacrilégio involuntário.
Tão redondinha que ela era. Tão carinhosa para com ele. Aqueles óculos grossos desfeavam-na um pouco, mas a miopia não perdoava. O Rapaz só não achava muita graça à beatice do seu ídolo. Ela dava demasiada atenção ao padre e passava muito tempo na igreja, aquilo não lhe agradava, mas o marido parecia não se importar, ele também era muito crente, talvez demasiado crente...
Os exames aproximavam-se, o rapaz andava assoberbado e cansado, o esforço era grande e não sobrava tempo para quase nada. A Mariana já não lhe ligava muito, como mais velha estava a crescer muito depressa. O rapaz estava a ser passado para trás, outros, mais velhos, andavam aproveitando.
Os exames chegaram e o rapaz safou-se. Após o exame de admissão sentiu-se um homem. Iria para o liceu e seria tratado por Senhor pelos professores, pelo menos fora isso que o pai lhe dissera.
Durante as férias grandes não viu o seu amor secreto, também não lhe sentiu muito a falta, mas antes das mesmas terminarem, teve o seu primeiro grande desgosto. A sua querida professora, o seu ídolo, o seu amor secreto, tinha mandado a lei de Deus às couves e fugira com o vizinho do lado. A sua fé em Deus e na raça humana começou a fraquejar.

O liceu foi uma má opção. O rapaz não se adaptou e o Pai decidiu que o Instituto dos Pupilos do Exército seria melhor. E foi. Aí os piolhos passaram a “ganaus” e ao aparecerem davam direito à carecada da ordem sabiamente executada pelos Srs. Ferreira e Couto. Pobres bichos que sem redemoinhos para vencerem acabavam extintos não provocando mais risos descontrolados durante as missas. O rapaz, em algumas daquelas a que não conseguiu escapar, sentiu saudades de um “ganausito” fazendo acrobacias para o distrair e, para piorar as coisas, a seu lado já não havia Marianas nem Professoras. Que saudade…

8 comentários:

  1. Delicioso! Seja no Boletim seja aqui, continua a servir à malta estes manjares literários.

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  2. Obrigado Cruz. Pode ser um manjar, mas daí a literários...

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  3. Meu amigo, estou á espera que tudo isso saia em livro, são excertos deliciosos que fazem antever leituras profícuas e muito agradáveis. Um dia ainda lhe proponho uma publicação a " meias ", caso entenda algum engenho por estas bandas. Um grande abraço e um bem haja. Jaime Moura.

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  4. Isto faz parte de um escrito meu (não me atrevo a chamar-lhe livro) de passagens da minha vida, a que dei o nome de O Lagarto. Posso enviar-lho por mail, mas olhe que são 200 páginas A5. Quanto a publicação não faço muita questão disso. Prefiro enviar isto para os amigos que me pedem. Grande abraço.

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  5. Pois é, estamos, os dois, a pensar da mesma forma;Haverei de voltar, pois vou comentar o último que publicou, bem interessante.

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  6. Uma maravilha, meu Caro Telo. Uma delícia de escrita e um prazer para o espírito. Malandreco este menino!...

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  7. Tornei a ler com mais gosto e curiosidade. Excelente. Tens de pôr "cá fora" toda esta experiência e toda esta vivência, para perdurar mais do que na Internet.

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  8. O teu piolho de estimação... foi-se, assim como a Professora e a Mariana... mas ficou o tratamento literário, sim... porque negá-lo, que tu consegues transmitir a quem te lê... E ainda não perdeste esse teu teor traquina e inocente, de dizeres as coisas sem filtros... São características que só te ficam bem!... Forte abraço!...

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