domingo, 5 de fevereiro de 2017

A morte

(Excerto do livro autobiográfico "O Lagarto")
...
O Capitão olhava o soldado estendido no cimento. O buraco nas costas deixava ver um bocado do pulmão. Não lhe fez qualquer impressão o cadáver, estava morto e pronto. O que o impressionava era que ainda há uns dias aquele soldado, que não pertencia à sua unidade, mas era padeiro de profissão, lhe tinha vindo pedir se metia uma cunha ao seu Comandante, para trabalhar na padaria da Intendência. Dizia que estava farto das operações, que se sentia um pouco cansado e que uns dias a trabalhar na sua verdadeira profissão lhe dariam forças para continuar. Como estava com pouco pessoal, o Capitão procedeu em conformidade. Agora ali estava, morto, atravessado por uma bala calibre 50 das metralhadoras de um helicóptero. O cabo da Força Aérea resolveu descarregar uma das metralhadoras da aeronave que se encontrava estacionada no heliporto por detrás da padaria, e sacou-lhe a bala da câmara. Esquecendo-se que elas eram acopladas e ligadas electricamente, puxou o gatilho. A outra ainda tinha uma bala e disparou. O tiro passou duas paredes de tijolo, furou um forno de campanha e atingiu o pobre padeiro. Porra de sorte! Não ir para operações para descansar, se lá estivesse talvez nada lhe teria acontecido e aqui... Se não tivesse aceitado a situação de transferência... Se... merda para isto!
No dia seguinte o funeral foi rápido. O Padre era um gajo porreiro. Aquele sim, dava gosto. Brincalhão, mente saudável, não vendia religião e muito amigo de algumas paródias, principalmente se feitas na Intendência. Sempre que havia funerais o nosso Padre apressava-se a realizá-los. Dizia ele que quanto mais rápidos melhor pois assim os vivos pensavam menos na morte.
Nessa noite houve bebedeira. Os Alferes do Batalhão procuravam animar o Capitão da Intendência que estava com o moral em baixo. Fizeram-se uns pães com chouriço, que acabadinhos de sair do forno eram uma maravilha. O Padre apareceu, na padaria, de blusão, apesar do calor. Quando o despiu mostrou duas garrafas de vinho Altar que trazia escondidas debaixo de cada braço. Dizia ele que antes da bênção era como o outro. Para o Capitão tanto fazia. Servia da mesma maneira. Ao vinho juntava-se belo paio e alguns queijos. Falava-se que era uma antiga namorada, dos tempos do liceu, que nunca tinha perdido as esperanças de o reconquistar, que lhe enviava aquelas iguarias lá da terra. Que lhe teria passado pela cabeça para deixar a namorada e ir para Padre? Após uns copos, uns bagaços e alguns pãezinhos, começaram as cantorias. Um dos Aferes era de Coimbra, tocava viola e cantava bem. As baladas e fados conimbricenses despertavam saudades das terras de cada um.
– Agora vai uma pornográfica – disse um deles. Todos acompanhavam. O Padre, de boca cheia gritava:
- Eu ajudo até onde souber.
Ah! Grande Capelão! Fizeste uma boa acção em confraternizar com os homens naquela hora de tristeza.
A confraternização acabou altas horas da manhã com algumas náuseas e tonturas. No dia seguinte a vida continuou...
O Capitão soube, anos mais tarde, que o Padre tinha mandado o sacerdócio às couves e casado com a sua amada. Grande alegria sentiu. Que tenham continuado juntos a saborear belos petiscos...

3 comentários:

  1. Há duas qualidades com que desde muito jovem gostava de ter sido bafejado: escrever e desenhar. Mas a Natureza, o Criador ou quem quer que esteja encarregado dessa distribuição, esqueceu-se de mim.
    Quanto ao desenho, estamos conversados: sou uma verdadeira negação.
    Quanto à escrita, fiquei-me por não atentar muito, ao que julgo, contra a ortografia e à sintaxe no que por obrigação tenho de escrever.
    Isto para dizer que muito aprecio quem escreve bem, quem desenha bem, quem tem a arte de transmitir aos outros ideias, valores, sensações, através daqueles veículos.
    E na escrita, aprecio particularmente o género conto, talvez por uma questão de economia de meios. Detesto o género “palavroso”, rebuscado, que espremido não deita sumo.
    Vem isto a propósito destes teus últimos escritos que descobri muito recentemente, de que muito tenho gostado e que por tal modestamente te felicito.
    Continua a publicá-los, antigos ou recentes. Uma sugestão: que tal verem a luz do dia também no Boletim da APE?

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  2. Absolutamente de acordo com a opinião do Nunes da Cruz... Estes excertos dos teus contos, seriam de certeza bem vindos às páginas do Boletim da APE. São curtos e ricos em narrativa, com detalhes curiosos e que retratam uma observação atenta do que te foi dado apreciar e viver... Força nisso Rui Telo e nunca acredites quando achares que não escreves tão bem como este ou aquele!... Cada um tem o seu estilo, a sua própria identidade e coisas diferentes a dizer e tu consegues fazê-lo de uma forma expedita, sem dar muitas voltas ao texto, mas sempre com uma grande carga de ironia e um recorte literário que retrata bem a elegância da pessoa humana que és!...

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    1. Obrigado Amigos pelos vossos elegante comentários. Assim, vocês dão-me alento para continuar. Bem hajam.

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