quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

O Casamento (Crónica social)


No belo solar dos Alarcão e Silva a azáfama era enorme contrastando com a monotonia dos dias normais. Neste dia casavam a sua jovem e virgem filha Isabel, uma linda rapariga de 19 anos que frequentava ainda a faculdade de direito. Maria Eduarda Menezes de Alarcão e Silva corria por toda a casa dando ordens aos criados para que tudo estivesse preparado. Passou pelo salão onde um copo-de-água sumptuoso estava pronto. Olhou para as mesas e não resistiu a dar os seus próprios toques, alterando o local de um castiçal aqui uma terrina de Sèvres ali, esticando um laço das camilhas acolá. Verificou os arranjos de mariscos e ficou satisfeita por olhar o trabalho artístico que, o melhor restaurante da cidade, tinha realizado. As mesas postas com um belo e antiquíssimo serviço Vista Alegre alternando com uns jarrões de Sèvres Luís XV, quase não tinham espaço por tanto cristal e faqueiro de prata. Satisfeita com o que vira retirou-se para o seu sumptuoso quarto, indo encontrar seu marido, Zeferino Ezequiel Monteiro de Alarcão e Silva, às voltas com o peitilho engomado do fraque. – Querida, ajude aqui com este peitilho. Não sei o que tem, ontem estava bom, hoje teima em encaracolar.
Maria Eduarda, com todo o carinho, endireitou o peitilho do marido ao mesmo tempo que lhe verificava as asas do fraque. – Meu querido, você está elegantérrimo. Vai ser o homem mais charmoso do casamento. Veja se não se amachuca muito durante a missa para depois aqui, no copo-de-água, estar impecável.
– Olhe querida, é melhor ir ver o que se passa com a nossa filha pois lá em cima está a costureira, o cabeleireiro, a manicura e o fotógrafo. Sei que é da praxe a noiva chegar sempre um pouco atrasada, mas convém não exagerar. Já ouvi os carros que entraram no jardim e já devem estar a chegar à porta. Antes de sair diga ao José que a orquestra deve estar a chegar e que liberte o salão grande para se poder dançar.
Pouco depois, a noiva, esplendorosa no seu vestido branco, segurando o seu ramo de flores de laranjeira, descia a escadaria da mansão sorrindo para os seus pais que no átrio juntamente com os convidados aguardavam ansiosos o divinal aparecimento. Os fotógrafos disparavam as suas câmaras e seguiam-na com as máquinas de vídeo. Descer a escadaria da porta principal demorou imenso por via de foto daqui vídeo de acolá. Meteram-se todos nos carros e o cortejo arrancou com o carro da noiva no fim. Este carro, um Rolls Royce Phantom, preto de brilho impecável, arrancou como se tivesse rodas de veludo não se ouvindo qualquer ruído do motor.
A igreja estava completamente engalanada com ramos de rosas brancas e passadeira vermelha. Na galeria superior um coro de donzelas, como que embaladas em tules brancos e rosa, entoava melodiosos cânticos. As senhoras nos seus elegantes e caríssimos vestidos de cerimónia e chapéus altamente sofisticados, olhavam-se entre si não perdendo pitada do que as outras vestiam fazendo comparações quase sempre negativas em relação aos trajes próprios.
À porta, Manuel Lencastre Azevedo de Tordesilhas e Faria, esperava ansioso a sua amada. Na espera, recordava como se tinham conhecido, como se apaixonara, como aceitara um namoro não muito prolongado mas casto, pois a moça, muito católica e temente a Deus, não aceitava mais do que simples beijos que o deixavam louco. Dizia ela que depois de casados, teriam muito tempo para se entregarem um ao outro gozando das delícias de um sexo consentido e aprovado por Deus.
O cortejo chegou. Os convidados tomaram lugar na fila em frente aos convidados do noivo. A noiva saiu e Zeferino conduziu a filha ao altar ao som da marcha nupcial de Lohengrin de Richard Wagner e entregou-a a Manuel que lhe estendeu as mãos. Ao fim de quase duas horas de missa com cânticos, homilia, eucaristia  e leitura de textos do novo testamento, os noivos saíram sob o olhar lacrimoso dos convidados. Após as fotografias dirigiram-se todos aos carros e o cortejo dirigiu-se à Mansão dos Alarcão e Silva. O dia estava soalheiro e a temperatura amena. Seguiu-se uma prolongada sessão, nos jardins, de fotografias e gravações de vídeo após o que todos se dirigiram ao palacete. Uma orquestra de dois violoncelos, seis violinos, dois clarinetes, um oboé e uma flauta recebeu as perto de trezentas pessoas ao som da Pavane de Gabriel Fauré.
Todos se dirigiram às mesas rodeando-as à procura dos seus nomes e mantiveram-se de pé até que os noivos se sentassem na mesa principal com os respectivos pais e padrinhos. Alarcão e Silva fez um gesto e o mordomo José acenou recatadamente para a porta que servia de copa. Um cortejo de empregados de jaquetas brancas com um estreito galão dourado e calças pretas, desfilou trazendo equilibradas grandes bandejas com toda a espécie de iguarias. O grande banquete começou. Do salão vinha quase em surdina o som da orquestra que tocava música clássica.
À medida que a comida ia sendo servida o vinho ia escorrendo das garrafas decantadoras. Brancos e tintos das mais diversas e prestigiadas castas desapareciam pelas gargantas dos convidados. Os peitilhos engomados começavam a querer sair debaixo dos fraques, laços e gravatas tinham tendência a desapertar-se, as vozes, de início tão em surdina, começavam a fazer-se ouvir em tons mais elevados não deixando quase perceber a orquestra que continuava a tocar Mozart e Bach. Os noivos pouco comeram e trocavam olhares lânguidos como a antever a oportunidade de ficarem sós, o que parecia nunca mais chegar. Entretanto chegou esbaforido, o irmão de Zeferino pedindo muitas desculpas pelo atraso, mas a sua namorada estivera de serviço ao banco e por via de um acidente ficara retida na urgência.
João António Jorge de Alarcão e Silva era dez anos mais novo que Zeferino e foi sempre tratado pelos pais como o “menino” que eles já não esperavam. Foi sempre um doidivanas e apesar de esperto e inteligente, por via das garotas e noitadas, não acabara a faculdade tendo arranjado um emprego mixuruca no hospital onde conhecera Sara que agora o acompanhava. Sara era enfermeira e uma rapariga moderna, desinibida e adepta do amor livre sem preconceitos. Conhecera João António, e o moço alto, ginasticado e bonitão não lhe escapou. Zeferino, convidara-o para o casamento da filha, sempre na esperança que ele nem aparecesse. Assim não aconteceu. João António não tinha fraque e nem se lembrou de alugar um. Vestiu um velho smoking já um pouco coçado, que o irmão lhe dera, e acompanhado por Sara vestida com blusa Lamé dourado e mini-saia preta brilhante, que deixava ver um par de pernas divinal. Os sapatos eram de saltos tão altos que quase a faziam da altura do acompanhante A chegada deste casal alterou completamente o ambiente, os homens reviraram-se nas cadeiras deitando olhos gulosos às pernas da acompanhante de João António, as senhoras quase se benziam ao mesmo tempo que comentavam entre si o ar desmazelado do irmão de Zeferino, enquanto as moças solteiras e casadoiras olhavam com ar dengoso o bonitão que tinha chegado estando-se nas tintas para o seu traje. Ao mesmo tempo os olhares destas para Sara eram de inveja pura.
Ocuparam os dois lugares livres à frente dos pais da noiva, que lhes estavam destinados, e começaram a comer um pouco à pressa para não fazerem esperar os convidados. Pouco depois, após os cafés, os brandy’s e os whisky’s, os convidados levantaram-se dirigindo-se para o salão onde a orquestra os recebeu com  a marcha nº 1, de Elgar, Pompa e Circunstância. Depois das palmas a orquestra iniciou uma série de valsas de Johann Strauss Jr.
Os noivos abriram o baile e depois de umas voltas foram acompanhados por aqueles que ainda se sentiam capazes de dançar. João António e Sara tentaram dançar a valsa, mas não se entenderam acabando a rir pelo total falta de jeito dos dois. Entretanto a orquestra mudou para uma série de tangos que foram aproveitados pelos mais velhos. A moçada nova começou a ficar entediada e foi-se esgueirando para as mesas.
João António disse a Sara: – Vou dar uma volta nisto. Pegou no telemóvel e marcou um nº:
 – Manel, daqui é o João. Estou aqui num casamento, mas estes gajos são uns botas de elástico que só tocam música de enterro para cotas e a rapaziada nova até já está a pensar em dar o salto para outras bandas mais animadas. Era chato para o meu irmão. Lembrei-me que poderias estar disponível e se tivesses o material na carrinha, poderias dar aqui um salto e animar isto, podes? Óptimo, traz a Rita contigo e ela que venha preparada para cantar aquelas brejeirices que ela sabe. Combinado? Meia-hora? Boa! Cá te espero na casa do meu irmão.
Passada meia-hora, o Manel e a Rita, transportando a sua pianola, faziam entrada no salão pedindo ajuda para que lhes trouxessem da carrinha o amplificador e duas grandes colunas de som. João António dirigiu-se ao maestro e falou-lhe ao ouvido após o que todos os músicos deixaram a sala.
Perante o olhar atónito dos convidados, Manel montou o material e experimentou uma nota que ia rebentando os tímpanos da assistência. Quando achou que tudo estava bem, meteu uma cassete de acompanhamento e começou a tocar cantando:
E toda malta gritou/ Até o padre ajudou/ Aperta, aperta com ela/ A banda sempre a tocar /O Povo todo a cantar/ Aperta, aperta com ela /Nós apertamos os dois/ Então aí é que foi /Aperta, aperta com ela/ Assim amor pois então /Começou nossa paixão /Nesse baile de verão. (original de José Malhoa)
Maria Eduarda, abriu a boca e não a consegui fechar. O Conde Vasconcelos de Atahide, que estava em pé, deu meia volta tão depressa que tropeçando na bengala, estatelou-se caindo com a cara no decote da D.ª Ermengarda Perestrelo, deixando cair o monóculo no exagerado decote, o que a fez soltar um estridente berro ao mesmo tempo que corava até às orelhas pelo “porra” bem audível que o Conde vociferou. Zeferino procurava o irmão tentando ver se através dele conseguia por cobro a tal blasfémia. Como não o vislumbrou no salão dirigiu-se à sala do copo-de-água, mas foi praticamente atropelado pela moçada nova que correndo saltou para o salão rindo e dançando ao som daquela música “pimba”. Entretanto o Manel mudou a cassete e a Rita cantou:
Meu amor trabalha muito
precisa de comer
preparo um pacote,
ponho de tudo um bocadinho
Eu levo no pacote
Ai eu levo, sim senhor!
Eu levo no pacote
Aí, tem outro sabor!
Eu levo no pacote
Pra gosto do meu amor!
(original de Rosinha)
A rapaziada exultava e ria, dançando e pulando. As raparigas puxavam os vestidos compridos prendendo-os na cintura mostrando as pernas. Aí a velharia, já com os vapores do álcool, começou a animar. Os rapazes despiram os fraques e arregaçaram as mangas das camisas.
Entretanto, a Viscondessa de Valmor, era abanada com o leque pela Baronesa de Aragão, enquanto o Barão lhe chegava ao nariz o frasco dos sais. Zeferino estava branco como a cal e mais branco ficou quando viu o seu genro levantar-se, pegar na mão da sua filha levando-a até meio do salão começando a dançar. A Senhora de Orleães e Gonzaga, rezava o terço ao mesmo tempo que erguia os olhos ao céu, como se pedisse perdão a Deus por os seus ouvidos estarem expostos a tais cânticos.
Entretanto, o Manel agora cantava:
Chupa Teresa!
Chupa Teresa!
Qu'este gelado gostoso,
É feito de framboesa!
Há gelado de morango
Baunilha e abacaxi
As garotas do meu bairro
Vêm todas chupar aqui!
(original de Quim barreiros)

Aí as risadas eram gerais. Até os velhotes riam a bom rir, alguns menos timoratos entraram na marcha com os rapazes e raparigas. As senhoras mais velhas saíram do salão e foram para o jardim apanhar ar comentando o escândalo.
No salão a música continuava com a Rita a cantar:
Meu amor gosta de comer
E gosta de variar de prato
Uma amêijoa suculenta
Para abrir a refeição
Ele gosta de saborear
Eu lavo a amêijoa para o meu amor comer
Eu lavo a amêijoa para ele se lambuzar
Eu lavo a amêijoa e tenho que lavar
Para lhe poder tirar todo aquele gostinho a mar
(original de Rosinha)
A festa agora estava no auge. Tanto a rapaziada como os convidados mais bebidos e desinibidos dançavam e faziam marchas dando grandes risadas e cantando fazendo coro com a Rita. Foi então que Maria Eduarda foi até junto da ruidosa aparelhagem e desligou a ficha. Depois foi junto de João António e pediu-lhe para sair juntamente com a namorada.
Os convidados começaram a sair e os Alarcão e Silva desculpavam-se como podiam. Alguns diziam: – Deixe lá. Olhe que até foi giro e divertido. A animação foi muita. Ao que Maria Antónia respondia agastada: – Animação? Diria antes, humilhação. Nunca me senti tão mal na minha vida.
Entretanto, os noivos, já em casa, por terem saído à socapa quando aquilo deu para o torto, beijavam-se ternamente. Já de roupão, depois de saírem da casa de banho, Manuel de Lencastre, abraçando aquela que já era sua mulher, dizia-lhe ao ouvido: – Aquilo foi giro e teve o mérito de teres aprendido alguma coisa. A propósito! Temos ameijoa para a ceia.


7 comentários:

  1. Estás contratado para mestre de cerimónias sem cerimónia nenhuma!... Fazes-me lembrar o Dali a desconstruir um Rembrandt ou um Miró a tentar simplificar as pinceladas de um Van Gogh... A desconstrução do socialmente correcto, raiando as franjas da brejeirice intencionalmente chocante, mas mantendo sempre um requintado, mas malicioso recorte literário, é uma das áreas que muito bem dominas, porque consegues ter essa apurada visão que despe os preconceitos falidos de uma certa sociedade, que no fundo é feita da mesma carne e sangue do mais descarado dos valdevinos, mas julga ser um sacrilégio deixar cair a máscara de uma falsa fidalguia que os inibe de se abandonarem à alegre liberdade de candidamente viverem a vida... e rirem-se de si próprios... E siga o baile!...

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    1. Amigo Balsa, conseguiste magistralmente, aplicando o termo do nosso comum amigo Nunes da Cruz, "ver" o meu pensamento ao escrever a clivagem entre duas sociedades. Uma agarrada a conceitos retrógrados, mas totalmente hipócrita e outra demasiado "pimba" e abandalhada, mas entre essas duas, uma franja da primeira, mais jovem, que luta contra a hipocrisia instalada, juntando-se à segunda para chocar, mas ao mesmo tempo divertir-se. Obrigado pelo teu excelente comentário.

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  2. Acredito que foi á boda, não posso imaginar que tal quadro não tenha sido cuidadosamente observado e, no papel, pincelado com a maestria dum colunista brilhante a isso habituado! Parabéns, espero que mais colunas destas apareçam, pois que,neste mundo farsante, os seus amigos mereçam crónicas de tão belo desplante.

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  3. Caro Comandante. Um belo comentário na sua prosa/poética. Um abraço e obrigado.

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  4. Gostei...adoro histórias descritivas... Confesso que acabei por me rir com o desenrolar da história e com a forma inteligente que se passa da nobreza para a plebe brejeira... Muito bem!

    Elsa Magro

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  5. Obrigado Elsa. O teu endereço não fazia parte do meu livro de endereços. Agora já lá está e vais passar a ter conhecimento imediato dos meus postes. Como já deste com o blog coloca o endereço nos favoritos:
    www.cabraltelo.blogspot.pt

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