quarta-feira, 16 de maio de 2012

O SEM-ABRIGO (II)

(Excerto de "O Sem-Abrigo")

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Alberto meteu todos os seus haveres no saco de lona e colocou-o às costas. Dirigiu-se ao refeitório municipal e entrou para o almoço. Sem este apoio, a maioria dos sem-abrigo de Lisboa não conseguiria sobreviver. O funcionário que controlava as entradas já o conhecia e ao vê-lo entrar com um livro na mão perguntou-lhe o que lia ele agora. Alberto virou a capa e mostrou-lhe o título “A Fórmula de Deus”, tinha na contracapa a foto daquele jornalista da Tv. Para o funcionário aquilo era chinês. Com um gesto indicou-lhe uma mesa. Alberto pegou no prato de alumínio e dirigiu-se ao “self-service”. A jardineira tinha bom aspecto e cheirava bem. Ali ninguém era esquisito e tudo o que vinha à rede servia. Depois de comer, Alberto ficou sentado durante um bom bocado observando os comensais. Havia de tudo, homens e mulheres, quase todos velhos, mas alguns com menos idade da que aparentavam. Que tragédias estariam por detrás daquelas pessoas? Por que amarguras terão passado para tomarem a opção de viverem na rua longe de tudo e de todos? Havia todos os tipos. Uns sujos e desleixados, de barbas hirsutas, dentes podres ou amarelos do tabaco, fatos rotos, sapatos abertos e desfeitos, mal cheirosos e piolhosos, outros um pouco mais cuidados, limpos de roupas e corpo, com fatos velhos e a degradarem-se, mas ainda apresentáveis. Algumas mulheres tentavam ainda parecer bem, alindando-se um pouco como se a sua vida não tivesse dado volta de 180 graus e alguma coisa da anterior tivesse ficado. Algumas tentavam ainda ser um pouco coquetes e chegavam-se mais para aqueles que ainda tinham algum cuidado com a apresentação. Havia uma, com alguns sinais de uma beleza que se ia perdendo, que tentava sempre comer ao lado de Alberto. Chamava-se Sara e vivia num prédio abandonado juntamente com mais duas mulheres e apenas um homem. Eram muito selectivas nas companhias pois já várias vezes tinham sido molestadas por tentativas de violação, a que, felizmente tinham conseguido fugir.
Alfredo e Sara falavam de tudo menos das suas vidas anteriores. Naquele meio respeitava-se muito a privacidade de cada um e ninguém queria saber quem era quem. Os motivos que os levaram àquela situação eram do foro privado e ninguém tentava penetrar nos segredos dos outros. Depois do almoço, distribuíram a cada comensal um bocado de sabão exortando-os a tomarem banho e alertando-os para o perigo de não o fazerem. Todos diziam que sim, mas a maioria não o fazia. Para muitos a degradação era total e estavam-se borrifando para as consequências. Os funcionários do refeitório bem lhes diziam que se não se lavassem, da próxima vez não os deixariam entrar, mas mesmo assim nada conseguiam.
Alberto e Sara saíram juntos e foram até um jardim onde se sentaram conversando. Sara falava bem e via-se que era letrada, lendo os livros que Alfredo lhe emprestava e que ela devolvia após a leitura. Trocavam depois impressões sobre os conteúdos. Estiveram umas duas horas em franca cavaqueira combinando encontrarem-se de novo no dia seguinte de tarde junto do balneário público.
Já no seu local de descanso dedicou-se às suas leituras. Não deu pelo tempo passar. Quando fechou o livro o candeeiro de rua já se encontrava aceso. Resolveu dormir aconchegando a manta ao corpo e tapando a cabeça.
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