sábado, 19 de maio de 2012

RECORDAÇÕES

Lembro-me… Bem, lembro-me de tanta coisa. Como era bom ir à pesca com o meu Pai aos fins-de-semana. Vivíamos com pouco mas não éramos pobres. A minha mãe fazia milagres com o parco rendimento de um funcionário público. Felizmente o meu Pai, que entretanto aprendera contabilidade, pediu licença ilimitada e foi para chefe da contabilidade de uma boa firma em Lisboa. Passámos a ter um pouco mais e o meu Pai aproveitava para, caçar e pescar sempre que podia. Desde muito pequeno que o acompanhei nessas actividades. Morando na linha de Sintra, deslocávamo-nos muitas vezes para a região do Cabo da Roca onde, fazendo quase alpinismo corríamos todas aquelas praias em manhãs, muitas vezes radiosas, outras de intenso nevoeiro muito comum na região.
Recordo o silêncio apenas interrompido pelo marulhar das ondas e, também o cheiro característico da maresia. Na praia escavávamos a areia procurando a “tiagem”, minhocas finas e compridas tanto do agrado dos peixes. Mas outros iscos eram usados como; caranguejos (mouras), lapas, mexilhões e pequenos camarões apanhados em mini-lagoas junto das rochas.
De tanto gostar daquela região, o meu Pai chegou à fala com uma característica personagem quase saída da ópera “A flauta Mágica” de Mozart, o Sr. Torcatinho que, se usasse na cabeça alguns ramos de árvore e flores, passaria muito bem por Papageno.
Pequenino, careca, de bigode, era merceeiro na aldeia da Azóia, que ficava mesmo antes de chegar ao farol do Cabo. Além de abastecer o pouco povo da terra, era também regedor e cantoneiro, tendo imenso orgulho disso e andando quase sempre fardado.
-- O Sr., que gosta tanto da pesca e desta zona, porque não passa aqui as suas férias? Tenho ali uma casinha que lhe posso alugar baratinha pelo mês de Agosto.
E lá fomos ver a casa. Fiquei de boca aberta ao chegar àquela habitação. Bem no fundo da aldeia havia um pequeno quintal rodeado de muros de pedra solta. A casa ficava quase ao fundo desse quintal totalmente cheio de silvados e ervas daninhas. Era alta e toda de pedra. Apenas uma porta que dava para a única divisão do piso inferior com chão de terra batida. O mobiliário constava apenas de uma grande mesa e de  um armário pendurado numa das paredes, com portas de rede mosqueira.
O piso superior ocupava apenas meia casa e era um sótão construído em madeira, também com uma única divisão e os tectos esconsos eram forrados a tabuinhas. Nesse piso havia duas pequenas janelas. O acesso ao sótão era feito por uma escada interior, em madeira, que partia da cozinha, com parede protectora e porta. Ao abrir-se a porta, tinha um pequeno patamar antes de se iniciarem as escadas. Os meus nove anos levaram-me a ver aquela pobre habitação como uma casa de contos de fadas. Fiquei encantado, e diga-se que o meu Pai também. Acordado o preço, selou-se o contrato com um aperto de mão. E lá fomos com a boa-nova para a minha mãe e irmã. Claro que o nosso entusiasmo levou-nos a descrever aquele “palácio” como se de um castelo se tratasse.
No dia um de Agosto partimos de camioneta do Cacém até Azóia, acompanhados pelo nosso “pointer”, o “Toy”. O pobre bicho enjoou todo o caminho e tivemos que, algumas vezes, pedir ao condutor para parar, para que o cachorro pudesse recuperar. Bons tempos aqueles em que os cães tinham “direitos”.
Parámos na venda do Sr. Torcatinho para irmos buscar a chave. – “Chave? Aqui não se fecham as portas. Podem ir que está aberta.”
À chegada, ao olhar para a casa, a cara da minha Mãe começou a mudar. Assim que entrou não resistiu e rompeu em copioso pranto que nos deixou consternados. Ao fim de algum tempo e de muita conversa, tipo: -- Deixa lá, é por pouco tempo e vais ver que vai ser engraçado. Vamos limpar isto tudo e dar-lhe alguma graça.
A pouco e pouco foi recuperando da estupefacção e lá se convenceu que teria de viver ali durante um mês.
E assim foi. A casa depois de limpa até era aceitável e com umas cortinas de chita e umas flores, até ficou com algum encanto. O chão, que era de terra bem batida, depois de bem varrido e ligeiramente humedecido, até ficava um brinquinho. A parte do telhado não coberta pela base do sótão, era de traves e telhas, e pelo intervalo de algumas, passavam réstias de sol Na grande chaminé vivia uma alentada aranha, na sua teia, que o meu Pai não deixou matar porque apanhava as moscas e outros alados bicharocos. Eu e a minha irmã inventávamos brincadeiras e fazíamos da escada interior o nosso “autocarro” que nos transportava até onde nos levasse a imaginação. O sótão foi dividido por um cortinado e num dos lados ficaram os meus Pais e nós do outro. As camas eram de campanha, os chamados “burros”, compradas na feira da ladra.
Não havia casa de banho mas o meu Pai montou no quintal um chuveiro, numa armação de ferro e lona, onde também colocou um daqueles bidés de esmalte montados numa estrutura de verga de ferro. Difícil foi convencer a minha Mãe e irmã a deslocarem-se até ao campo… sempre que se tornava necessário.
Um dia fomos alertados pelos gritos da minha Mãe, que saindo do quarto, ao descer as escadas deu com uma vaca que, pachorrenta, entrara pela porta e estava plantada dentro da cozinha. Tivemos que a acalmar mas não pudemos deixar de rir pelo tremendo susto que apanhara.
Todas as manhãs muito cedo, eu e o meu Pai, armados dos respectivos apetrechos, deslocávamo-nos até à costa onde eu, preso com uma trela a um peitoral de correias, que o meu Pai construiu, descia penhascos e barrancos até às lajes onde fazíamos poiso para a actividade piscatória.
Corremos todas as praias da região: Adraga, Ursa, Magoito, São Julião, Ericeira, etc. As deslocações para os locais mais longe, faziam-se em velhas camionetas de carreira sendo as refeições levadas em bornal de lona, constando de sandes, cerveja e gasosa (pirolitos) para mim. O nosso “Toy” acompanhava-nos sempre que pescávamos em locais não perigosos para ele. Quando íamos para sítios mais difíceis, o bicho ficava em casa a fazer companhia às mulheres. Muito peixe pescámos e muito peixe comemos. Naquele tempo a pesca era farta na zona e os pesqueiros, que nos eram dados a conhecer pelos pescadores da terra, eram perigosos mas profícuos. No regresso, no final de Agosto, voltámos também de camioneta, não sem antes passarmos pela venda do Sr. Torcatinho para as despedidas. O pobre do “Toy” voltou a enjoar mas dessa vez vomitou grandes bocados que se veio a verificar serem de atum. O bicho, aproveitando as despedidas, tratou de devorar apressadamente uns bons nacos de atum fresco que a “operática” personagem tinha de molho para vender aos conterrâneos.
...




3 comentários:

  1. As recordações da tua infância passam-se em locais que o meu cunhado, irmão da minha mulher, percorreu. Moravam no Cacém, em 1942, na Estrada de Paço de Arcos, ano em que entrou para o pilão com a alcunha do "Isca" tendo sido o antecessor do companheiro das tuas traquinices.
    Como o mundo é pequeno
    Grande abrç.
    Cruz

    ResponderEliminar
  2. Cónica verdadeiramente deliciosa e quase pictórica, dada a minúcia da descrição!... Acho que está na hora de fazeres uma escolha dos teus textos mais interessantes e pitorescos e avançares para a publicação do livro da tua vida!...
    Belo texto este, datado duma época de que muitos já quase não se recordam ou nem nunca chegaram a viver... E por isso mesmo, apetecível de ler e pôr a imaginação a trabalhar!...

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Esse livro já está escrito. Publicar é que não... Um dia destes dou-lhe uma volta e acrescento umas coisas. Obrigado pelo teu comentário.

      Eliminar