(2º capítulo de “Pedras Negras de Vermelho”)
Mariana estava junto da sogra. Eram bastante chegadas desde o tempo do seu namoro com Fernando. Foram sempre bastante cúmplices nas conversas íntimas e não tinham segredos uma para a outra. Agora, o ambiente estava bastante mais pesado. A morte da avó do Fernando abalara a Dª Gloria. Esta sentia muito a perda da sua mãe e companheira de uma vida, mas tinha discernimento e bom senso para saber que a vida não parava e era preciso continuar. Tinha o filho, os netos, a nora e uma casa para administrar apesar de ter ficado mais vazia.
– Mariana. Que pensas tu sobre o que há para além da morte? Achas que poderá haver algo de sobrenatural? Algo de etéreo onde os mortos possam estar e podermos vir a encontrá-los neste ou noutro mundo?
– A Glória sabe bem que, tal como o seu filho, não acredito nessas cantilenas que os crentes nos impigem. Tempos houve que, por via dos meus pais, professoras, catequista, etc., vivi anos convencida dos poderes sobrenaturais de um deus que me impingiram também convencidos duma verdade que ninguém conseguiu explicar. Mais tarde, assim que comecei a pensar e a estudar os assuntos, a ciência e a minha consciência começaram a pôr em causa essas crenças. Pode pois estar completamente descansada. Esse tal ser fantasmagórico não existe e, portanto, nada comanda nesta vida. Aliás, a ideia de um deus protector e pessoal, dirigente das vidas de cada um, dá-me uma enorme vontade de rir. Então quem comandaria a vida dos criminosos? O diabo? E deus deixava? Pobre deus esse, tão pouco poderoso.
– Tens razão, minha filha, tudo isso é uma treta e uma história mal contada apenas para dar poder às seitas que usam os deuses para obterem benesses e poder. Não quer dizer que alguns membros das seitas, não sejam homens honestos e bons com vontade de fazer o bem sem pensarem nos dividendos, mas esses andam distraídos. Bastava olharem em volta e verem como as hierarquias superiores vivem e quais os meandros das suas políticas para conseguirem a clientela que lhes garanta os fabulosos lucros.
Claro que muitas vezes, a nossa mente nos leva a dúvidas face à morte. Todo o ser humano gostaria de viver eternamente, mas acaba sempre por ser posto em face da morte e isso é coisa que assusta. Todos gostariam de se perpetuarem, mas como a morte aparece, fica-se obviamente inclinado a pensar que terá de haver algo para além da vida como uma justificação para que a mesma tenha feito sentido.
– Querida sogra, todos procuram uma justificação para a vida, como se isso fosse absolutamente necessário. Parece que o simples facto de existirem não lhes chega. Mas ninguém pergunta o porquê da existência do cão, do rato, da formiga. Porquê existirem? Para onde vão quando morrem? Pisamos a formiguinha e ela morre como nós morremos quando somos atropelados por qualquer objecto maior e mais pesado do que nós. Aí dizemos que chegou a hora, que estava programado, que foi deus que quis. Só que deus é um ser sedento de companhia, mata milhares de seres por dia e normalmente escolhe mais os coitadinhos, as crianças, os pobrezinhos. Aos ricos e aos malandros deixa-os por cá mais tempo. A Igreja não explica isto. Diz apenas que os desígnios de deus são insondáveis. Tanta hipocrisia. Fique descansada Glória. A sua mãe acabou, está apenas onde deve estar, na sua lembrança.
– Claro, minha querida. Deixemo-nos destas coisas. Vamos à vida, que continua. Vais para casa? Não te esqueças de falar com os pequenos, de sossegá-los acerca da morte.
– Não tenha problemas, o Fernando já falou com eles. São uns meninos esclarecidos e livres de lavagens ao cérebro perniciosas. Vou esperar pelo Fernando, não a deixo aqui sozinha. Pessoas sós têm tendência para a depressão.
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