Conversa II
No dia seguinte iniciei o meu passeio matinal um pouco mais cedo. Sem querer admitir, estava um pouco excitado pelo que iria encontrar. Por um lado estava convencido que, o maluco já não apareceria, mas por outro, algo me dizia que sim que iria estar lá e a conversa iria prosseguir.
Cheguei ao largo do costume mas não me sentei no mesmo banco. Optei por outro, ligeiramente de esguelha e mais escondido. O tipo realmente não estava e comecei a esmorecer talvez um pouco desiludido. Fechei os olhos por momentos, cogitando sobre tudo aquilo. Quando voltei a abri-los lá estava ele. Sentado no mesmo banco do dia anterior, vestido da mesma maneira, parecia que nem tinha saído dali. Olhava para mim com aqueles olhos prescutadores como se me lesse por dentro. Resolvi ficar quieto deixando que fosse ele a tomar a iniciativa de me chamar. Poderia até ser que a sua maluqueira lhe desse para não me reconhecer e até nem se lembrar do que se passara ontem. Mas estava enganado. O Homem levantou-se e com passo firme caminhou direito a mim dizendo:
– Meu Caro! Ainda bem que veio. Pelos vistos a nossa conversa despertou-lhe algum interesse.
– Olhe! É verdade. Não vou dizer que não. A sua conversa de ontem deixou-me deveras curioso. Sabe que sou conhecido, entre os meus amigos mais próximos, como o chato das religiões? Sendo um ateu convicto, adoro temas religiosos. Sempre me fascinou tentar compreender por que é que o homem, com a sua inteligência cada vez mais construída e consolidada pelo que vai descobrindo pelo raciocínio científico, pelas experiências que vai realizando e comprovando, cada vez mais se aproxima de uma realidade assente nas causas naturais, continua a necessitar do não natural, do fantasmagórico, do incompreensível, para se agarrar àquilo que ainda não entende, talvez esperando que causas sobrenaturais lhe resolvam o que não consegue resolver por si. É um tema absorvente. Mas, Jesus; nesta altura já o tratava pelo nome com que se intitulava. Diga-me! Por que será que sempre foi assim ao longo dos séculos?
– Meu Caro, o mal do homem foi ter desenvolvido demais a sua inteligência, os outros animais não precisaram, contentaram-se com a resolução dos problemas para a sua sobrevivência. O homem tornou-se ganancioso. Quis sempre ter mais, fazer mais, conhecer mais. Como não consegue saber tudo e ter tudo, veio pedir a nossa ajuda.
– A nossa? Interrogo eu algo curioso.
– Sim a nossa, a dos Deuses. Nós sabemos sempre o que fazer quando o homem tem dúvidas e deixa de acreditar nele próprio.
– Têm a certeza? Não pude deixar de perguntar. Nunca resolveram nada! Antes pelo contrário, só têm complicado as coisas promovendo a discórdia entre os vários vossos acreditadores.
– Pois é, disse-me ele. Realmente não resolvemos, mas conseguimos fazê-los acreditar que vamos ajudar a resolver e isso dá-lhes ânimo, começam a pedalar e, na maioria das vezes encontram as soluções e ainda nos agradecem.
– Chi...afinal os deuses são tão aproveitadores quanto nós. Olhe lá, posso perguntar algo sobre o seu Pai?
– Quem o José?
– Não bolas! Já não entendo nada. Quero falar do outro, aquele que determinou a sua vinda à Terra!
– Ah! Deus?
– Isso, Jeovah!
– Pergunte!
– Afinal, sendo ele deus dos Judeus. Tendo ele escolhido aquele povo como povo eleito, por que é que eles, os seus seguidores, que sempre cumpriram as suas leis, sempre o idolatraram, sempre o temeram, nunca acreditaram em Você? Caramba! Custa a crer! Um povo que sempre cumpriu as suas regras, que sofreu os seus castigos, que teve as suas benesses! Bolas! Logo eles não acreditaram no filho? Antes que responda, vou tentar dar-lhe a minha ideia dos factos. Depois dê-me a sua.
Penso que, assim de repente aparecer um homem a intitular-se filho de deus, seria para eles um sacrilégio. Então deus, um ser omnipotente, omnipresente, omnisciente, completamente etéreo e fantasmagórico, que sempre se fez ouvir através de homens dignos, chefes pragmáticos e comandadores, faz-se representar por um Homem, Você, com aspecto de pedinte, pouco seguro de si, a pregar a paz, que o seu Pai nunca pregou, antes pelo contrário, a falar para os homens que devem dar a outra face em caso de ataque, eles que o que queriam eram formas de libertação do jugo Romano, eles que queriam ser independentes e dignos, aparece Você a dizer-lhes para serem bonzinhos e darem aos pobres, ah!ah!ah! Dizer isso a Judeus, que sempre amealharam e nunca gostaram de dar nada a ninguém? Ou eu estou enganado ou a política lá de cima, veio muito mal estudada. Será que se enganaram? Você devia era ter aparecido aqui, na Península Ibérica, com os seus ensinamentos escusávamos de ter andado permanentemente à porrada, não tínhamos expulsado os Árabes, que coitados, estavam cá há 1100 anos. Quem sabe não estaríamos mais instruídos, a gostar de matemática e de ciências em que eles eram pródigos. Continuávamos pobres, como agora, mas não estávamos tão preocupados. Teríamos garantido o reino dos Céus para descansar, que é o que nós gostamos mais!
O meu interlocutor ficou calado por um bocado, mas depressa se refez.
– Você, para ateu, até nem é estúpido de todo. Não deixa de haver uma certa razão no que diz. Realmente andei a pregar aos peixes e deitei pérolas a porcos. Aquelas bestas...
– Jesus! Não pude deixar de retorquir. Tenha lá cuidado com a língua. Não se chama isso àqueles desgraçados
– Tem razão, não devia empregar estas palavras, mas tenho andado por aí, visitei alguns locais frequentados pela juventude e olhe...estou a apanhar o jeito deles falarem. Mas, dizia eu, aqueles famigerados não mereceram o latim, digo o aramaico, já não sei, talvez o hebraico, que andei a gastar. Houve uns quantos que me escutaram e seguiram, outros acreditaram em mim pelo bem que lhes fiz, curei uns, fiz ver outros, pus outros a andar quando eram coxos... enfim, esforcei-me e veja-se a paga. A maioria assim que instada pela turba, bem me entregou aos romanos que me penduraram num instrumento de tortura que usavam para os bandidos e ladrões. Não tiveram coragem de me lapidarem, como faziam aos apóstatas na época. Felizmente, aqueles que me escutaram encarregaram-se depois de transmitir a minha palavra.
– Depois? Perguntei eu. Muito depois! A sua palavra levou tempo a chegar aos ouvidos da populaça. E continuou a não ser escutada pelos Judeus. Esses nunca acreditaram em si. Ainda hoje esperam o Messias! Só os romanos, muitos anos mais tarde foram levados pela palavra escrita dos ditos seus seguidores e, segundo parece, nem foi a palavra de todos. Diga-me cá, aquela coisa dos escritos apócrifos é verdadeira? Segundo parece, nem só Lucas, Mateus, Paulo e João escreveram sobre a sua vida, obra e morte? Outros o fizeram também e disseram coisas muito díspares do que é costume ouvirmos. Parece que esses escritos nunca o trataram como divindade, mas sim apenas como homem. Homem profeta de deus claro! Mas Humano como todos nós. Diga-me cá, aquilo de ter casado com a Madalena sempre foi verdade? Segundo se anda a contar por aí ela até era de sangue Real e uma grande dama. Porquê alguns dos seus seguidores a quererem vilipendiar ao ponto de a tratarem como prostituta? Isso não se faz!
Jesus ficou pensativo. Ia a responder, abriu a boca mas não proferiu palavra. Ficou calado durante um bom bocado. Já começava a desesperar por uma resposta quando ele diz:
– Meu amigo, julgo que já posso tratá-lo assim, apesar de você não ser um dos meus seguidores, vejo que não tem má índole e até conhece um pouco do que foi a minha vida. Hoje estou um pouco cansado. Se quiser aparecer amanhã eu dou-lhe uma explicação para o facto.
Despedi-me daquele homem. Já não sabia o que pensar. O tipo não era assim tão maluco. Poderia ser? Não! Não posso acreditar nisso! Será que estou a ficar maluco também? De qualquer modo amanhã cá estarei.
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