quarta-feira, 21 de março de 2012

O Purgatório

Quando bati a bota senti-me leve. Olhei para baixo e nada vi, olhei para cima nada vi também. Mas eu estava ali pairando sem saber bem para onde ir e a sentir que para qualquer lado iria. Afinal, estava enganado. A Avó, a minha professora e catequista e o padre capelão lá do Pilão bem me avisaram que ao morrer a nossa alma iria para algum lugar e eu deixara de acreditar. E ali estava eu pairando sem saber qual o destino mas descansado e relaxado, sem medo e expectante. Para onde iria? Para onde me dirigiriam? Quem me comandava?
Cheguei junto de uma porta que se abriu sem que ninguém a movimentasse, não havia claviculário ou porteiro, entrei e dei conta que outros etéreos seres por ali andavam entrechocando-se, misturando-se, como gases diferentes circulassem dentro de um recipiente, penetrando-se mas não se hegemonizando.
Senti a presença de alguém que conhecia, sem vislumbrar o ser, mas que se coadunava comigo e acabei por falar-lhe:
− Meu Caro, que faz aqui? Que fazemos nós aqui? O que é isto?
Isto meu amigo é o purgatório estamos aqui para que rezem por nós estão aqui outros para que rezem por eles só assim poderemos passar para outro lugar mudar de nível enfim descansar a alma.
− Já sei quem você é. Essa forma de falar contínua, sem respiração, sem pontuação. Você é o Saramago!
Claro que sou estou cá há pouco tempo morri sem querer ainda tinha muito que escrever e estava a fazê-lo só que tive de abandonar tudo de repente e vim cair aqui.
− Tal como eu meu amigo. Também não queria vir, estava até convencido que a minha hora ainda não tinha chegado, queria andar por lá até aos 99 e só morrer de desgosto de amor.
− Disso morri eu a minha Pilar ficou sozinha e agora não tem ninguém para a acompanhar.
 Pois até já estou a falar como o meu amigo daqui a bocado estou sem fôlego vou mas é colocar as vírgulas nos sítios e pôr letras grandes só depois dos pontos e colocar os travessões para sabermos quem é quem porque escrever assim é só para tipos com talento e eu não o tenho.
-- Claro, deixo isso ao seu critério cada um tem o seu método as suas idiossincrasias, Vamos lá então falar como as pessoas se por acaso pessoas nós agora somos.
-- Também não me sinto lá muito concreto, não me vislumbro mas existo, isto é diferente e muito esquisito. Não vejo ninguém a comandar, não há chefe, não há liderança.
-- Já houve, só que estamos num período de incertezas, parece que isto vai fechar, vai acabar, extinguir-se.
− Então? Porquê?
− Julgo que o partido teocrático lá de baixo, decidiu que isto era treta, que não existia, o presidente desse partido, por acaso eleito mas para cargo vitalício, resolveu dizer aos seguidores que o purgatório não o era e que ou se ia para o inferno ou para o céu e agora parece que até o inferno está em causa e lá vai o diabo para o desemprego.
− Mas como é que isto não existe se estamos aqui, se tantos também por aqui estão?
− Pois. E alguns até estavam quase a sair. Mais uns padres-nosso e algumas ave-maria e estavam de subida. Agora já ninguém os reza, não vão rezar para tirar almas de um lugar inexistente.
− E nós? Quem rezará por nós?
− Olhe amigo, pode ser que haja alguém das nossas relações que seja céptico, que não tenha acreditado no JP2. Muitos ainda rezam à Filomena que continua a ser santa nas suas mentes mas que nunca o foi apesar de muitos anos o ter sido na mente dos seus devotos.
− Estamos lixados. Vamos ficar aqui “ad eternum”, ninguém irá saber de nós, vamos apodrecer antes daqui sairmos se por acaso almas apodrecem, penso que não. Mas agora pergunto. Saramago no purgatório? Um comunista ateu que até escreve evangelhos mas não escrito por seguidores, antes descrito pela personagem principal. Sacrilégio sem perdão, ignomínia irremissível. Devia ter ido directo para o inferno, pelo menos é lá que alguns o julgam, principalmente aqueles a quem o meu amigo, após a revolução, atirou para o desemprego.
− Pois é. Afinal parece que não fiz tanto mal como julgaram, que não sou traidor como me chamaram, até lá em baixo já me inocentaram, pelo menos no meu funeral apareceram lá todos, só lá não vi o Lara e o Grande Chefe, mas também era pedir demais.
− Claro. Diziam muito mal mas todos o liam, calhava mal não ler Saramago, não saber discutir os seus enredos e a sua prosa era ser-se inculto. Mas tudo bem, parece que se ultrapassaram as divergências. Agora tudo está OK só nós é que estamos mal sem podermos sair daqui e nada podemos fazer. Estamos num lugar onde só tínhamos de aguardar pacientemente que alguns, lá por baixo, se lembrassem de nós e por nós rezassem acompanhando as rezas com o acender de umas velinhas pois a organização precisa de realizar uns cobres para não deixar emagrecer os cofres. Agora quem se vai lembrar disso se já não há purgatório e julgam que estamos no céu ou no inferno, por azar nosso dois lugares onde as almas não precisam de que rezem por elas por umas estarem no sítio cimeiro e outras já não poderem sair do castigo eterno. Estamos feitos. Mas foi bom ter vindo para aqui, pelo menos tive o grato prazer de poder dialogar consigo, alguém que muito prezo pelos escritos que produziu. Lá por baixo as pessoas pouco dedicadas às leituras não podiam consigo, bastava saberem que o meu amigo era comunista, parece até que se convenceram mesmo que comia criancinhas ao pequeno-almoço, como se em Lanzarote houvesse pouco para matar o bicho. E a propósito, isso de ter saído do país também não caiu bem, pode-se emigrar para ganhar dinheiro mas não se pode sair assim sem mais nem menos só porque lhe apeteceu. E ainda por cima casa com uma espanhola, quando de lá nem bom vento vem quanto mais casamento.
− Meu caro. Os cães ladram mas a caravana passa. Cá não me deram valor, até recusaram um livro meu para um prémio, só que se lixaram e levaram com o meu Nobel pelos focinhos, até me fartei de rir. Morava fora mas nunca abandonei a minha nacionalidade e sempre que podia visitava a minha terra e de meus Avós onde ainda tinha muitos amigos.
− Bem. Agora tudo mudou, o meu amigo está morto e lá no nosso país os mortos passam todos a serem bons mesmo que não o tenham sido em vida. Na véspera dizia-se mal mas no dia da morte o maldizente é o primeiro a fazer o panegírico mais amistoso e admirável. Para mim fique sabendo que me estive nas tintas para a sua orientação política apenas sempre apreciando com imenso prazer as suas divagações literárias que me deliciavam. Com isto até nos esquecemos do sítio onde estamos e da situação difícil em que nos encontramos. Como sair daqui? Já tanto me faz ir para baixo ou para cima, o que quero mesmo é saber que posso mudar e não vou ficar aqui sem honra nem glória. O meu amigo que cegou um povo inteiro e encontrou forma de o pôr a ver de novo encontre lá uma solução.
− Pudesse eu escrever e encontrava, só que almas não escrevem nem falam e o computador ficou lá em baixo e parece não haver por aqui papel e canetas.
− Não falam? Que estamos nós a fazer?
− Comunicamos, o que é muito bom. Quando se lê comunica-se. Parece que vamos ficar aqui para sempre…
− Que sensaboria, ter almas penadas à espera de mudança de rumo dependendo de outros ainda vivos é mesmo uma impiedade que ninguém merece. Realmente isto não podia ser invenção divina e bem fez o JP2 ter acabado com tal maleficência.
− Olhe. Vou tentar puxar pela cabeça, se por acaso cabeça é coisa que ainda tenho nesta composição rarefeita e arejada que agora apresento. Aguente enquanto tento…
Foi um trambolhão dos diabos, acordei ainda antes de chegar ao chão, olhando para todos os lados sem saber bem o que me acontecera. Afinal tinha caído da cama. Saramago já não estava ali e era uma pena, mas felizmente eu estava vivo e com uma vontade ainda maior de continuar a viver. Vou mas é comprar um livro do meu amigo que ainda não tenha lido para poder continuar a falar com ele.
Quanto ao purgatório não existe mesmo. Foi banido…
Rui Cabral Telo

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