Conversa IV
Gaita para isto. Levantei-me a pensar naquele desgraçado. Que lhe teria dado para se armar em redentor da humanidade? Seria porque, ao ler a Bíblia e o Novo Testamento, não ficou satisfeito com o rumo que as coisas tomaram? Ou terá achado que as patranhas eram demasiado toscas para levar indivíduos inteligentes a acreditar naquilo? Quem será o gajo? Inteligente e com alguma cultura, nota-se. Conhecedor das escrituras é ele. Por que me terá escolhido a mim? Será que já me terá ouvido em qualquer lado? É bem possível. Também parece que não sei falar de outra coisa. A fé dos homens é um assunto tão fascinante...
Tinha de continuar a ouvi-lo. Hei-de esclarecer as coisas. Nem eu vou mudar a minha opinião, nem ele, de certeza, irá mudar a sua condição divina, mas a conversa irá de certeza continuar interessante. Que tenho a perder? Nada! Os nossos espíritos, leia-se mentalidades, irão beneficiar com isso. Vou continuar. Se ele voltar a aparecer, claro.
E apareceu. Lá estava ele, no mesmo banco, com o mesmo aprumo, sorriso nos lábios, parecia contente ao observar os passantes. Pensaria talvez que aquelas pessoas ali não teriam os seus problemas e, naturalmente não tinham, viviam a vida apenas como ela é, uma sucessão de factos para os quais vamos tentando encontrar soluções e normalmente não são as melhores, quando temos problemas dizemos:
– Meu deus ajudai-me. Mais ou menos como quem diz – Porra! Se esta merda não se resolve estamos lixados.
A banalização das preces é corriqueira. Os pedidos de ajuda aos nossos deuses tornam-se lugares comuns. Ninguém pensa em deus quando diz:
– Meu deus! Minha querida! Que gorda que está! O que lhe aconteceu? A resposta será:
– Graças a deus agora estou melhor. Acertei com o médico. Este é uma jóia. Receitou-me tudo o que me faz bem, deus queira que continue assim... deus para aqui e para ali, completamente banalizado. Tenho de falar nisto a Jesus...
– Olá Jesus está bom? Gaita! Lá continuava a estupidez. Penso que não é assim que nos deveríamos dirigir a Jesus. Mas que hei-de fazer? Quem está na minha frente é um homem e eu não acredito em deuses.
– Olá amigo! Como vai?
Tenho a impressão que ele compreendeu a minha frustração.
– Vinha aqui a cogitar comigo mesmo e a pensar nas nossas conversas anteriores, perguntava-me quem seria realmente Você e o porquê de me ter aparecido assim. Por que não resolveu começar a fazer comícios? Podia subir para um caixote e começar a falar às multidões. Como começou lá na palestina? Também escolheu um descrente para o início?
– Lázaro era rico e descrente e eu ressuscitei-o!
– Essa a mim pareceu-me demasiadamente propagandista, foi um “show” para aliciar a canalha. De que lhe serviu o ressuscitanço? Acabou por morrer outra vez. Nunca cá ficou nenhum! Pareceu-me muito narcisismo da sua parte. E, olhe, já agora diga-me lá, Jesus, Você, ressuscitou mesmo?
– Se assim não tivesse sido ninguém iria acreditar na minha condição divina! Deuses mortos não servem para nada. Veja o que aconteceu aos Deuses romanos e aos Gregos. Foram morrendo, acabaram. Os ressuscitados voltam e ficaram na cabeça das pessoas. É preciso ressuscitar Deuses para levar os descrentes a acreditarem e os já crentes a continuarem. A não ser assim para que serviríamos?
Não fiquei lá muito satisfeito com a resposta. Aquilo já eu sabia, mas notei que ele não estava interessado na continuação do tema. Resolvi mudar. Voltei-me para algumas questões que sempre me incomodaram na leitura das escrituras. E aí perguntei:
– Diga-me! Que me diz do que está escrito no Antigo Testamento? Como é possível tanta patranha escrita, que agora, à luz da ciência, se chega à conclusão que está tudo errado? E porque deus, naquela altura, era tão implacável e mau para o próprio Povo que elegeu como seu? E já agora, porquê só aquele povo? Não haveria outros que tivessem merecido também a sua complacência e o seu apoio?
– Ena! Tanta pergunta ao mesmo tempo. Sabe, eu naquele tempo ainda não existia, Deus pensou que dava conta do recado sozinho. Só mais tarde é que viu que tudo aquilo que quis construir estava uma boa...como direi...bem não interessa, não estava bem. Mas, como 2.º elemento duma trindade, eu sou ele e ele sou eu. Percebe?
– Lá perceber não percebo. Aliás a maioria não percebe. Tenho até dúvidas que alguém perceba, mas habituámo-nos a ouvir e ler isso e não contestamos. Para quê? Não é demonstrável!
– Pois é! É difícil! Continuemos: Naquele tempo os homens tinham poucos conhecimentos científicos, não podíamos explicar as coisas como hoje. Toda a gente sabe que o Universo, essa imensidão, não foi criado em 7 dias. Também já ninguém acredita em Adão e Eva, como explicar as coisas naquela época?
– Então está a confirmar-me que o Génesis é uma fantasia, um misticismo?
– Claro que é! Era preciso! Deus tinha que se afirmar! O politicamente correcto é encontrar formas de acreditarem em nós. Foi o que fizemos.
– Mas agora? Com certeza não vão ter a veleidade de que mentes científicas, conscientes das realidades, continuem a acreditar nessas patranhas?
– Meu Caro! Ficaria espantado se lhe conseguisse meter numa enorme alcofa as mentes de miríades de indivíduos, que sendo cultos, conhecedores, cientistas, se recusam a deixar de acreditar nessas coisas. Lá no fundo algo lhes diz que não pode ser, mas a dúvida continua. E depois? Se não acredito e Deus se zanga? Aquilo no Inferno deve ser duro de roer. Não! Não vou contestar. Quero o descanso eterno. É assim, amigo, é assim que os dominamos.
– Ah! Então sempre é verdade. Vocês, deuses, querem é dominar.
– Meu Caro. Você é mesmo ingénuo, como quer que alguém se afirme se não conseguir dominar? Como fazem os políticos? Como fazem os médicos? Como fazem as autoridades? Claro que temos de dominar para nos afirmarmos.
Não contestei. O tipo estava cheio de razão. Felizmente que pertenço à classe dos não domináveis. Continuo a não acreditar.
– Bem, continue, a minha pergunta ainda não está esgotada. Porquê a ira de deus?
– Tem tudo a ver com o mesmo. Não há ninguém que sendo bom consiga dominar. Só se domina pelo medo que se consegue incutir. Deus para obter obediência tinha que castigar!
– Mas tanto? Acha que afogar a humanidade inteira não foi exagero? Será que nos que pereceram afogados, coitados, não haveria alguém que merecesse mais do que algum dos membros da família de Noé? E porquê destruir as cidades de Sodoma e Gomorra? Só porque havia lá uns quantos homossexuais? Hoje teria que destruir o Mundo inteiro. O que não falta para aí é disso. E por que castigar a simples curiosidade da mulher de Lot? Transformar a pobre coitada em estátua de sal só por que olhou para trás. Pobre senhora! E depois lá pôs as filhas a fazer sexo com o Pai porque não havia mulher. Não foi pior a emenda que o soneto? E aquela de obrigar o pobre do Abraão a imolar o filho a si próprio? Vá lá que nessa foi só o susto, depois emendou a mão e toca de dizer ao desgraçado que era só para testar a sua obediência. Porra para tais métodos...
– Tem alguma razão. Houve exageros divinos. Mas os Deuses sempre foram assim, irascíveis e déspotas. Eu, fui talvez o único, que tentei mudar isso, mesmo assim, passei-me dos carretos algumas vezes. Aquela dos vendilhões fazerem mercado nas portas do Templo fez-me pirar. Dei-lhes chicotada que ferveu.
– Está a ver, também foi mauzinho! Devia ter perdoado como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...onde é que eu já ouvi isto?
– Não seja jocoso! Não brinque com as minhas palavras. Tentei sempre aplicá-las da melhor forma e nos melhores contextos. Se não consegui... paciência. Já agora vou acabar de responder à sua pergunta e depois vou continuar o meu périplo por aqui e ali.
Os Judeus eram o povo que na época estava mais escravizado e oprimido. Tínhamos de arranjar um catalizador para nos darmos a conhecer aos homens. Servimo-nos deles.
– Essa não! Com tanta humanidade escravizada, com tanto povo aprisionado e torturado. Porquê só eles? Tenho a impressão que terá sido ao contrário, eles é que se aproveitaram de deus para se auto-promoverem como povo eleito. Na actualidade até lhes deu jeito. Encontraram uma Pátria por direito divino. Bem vá lá passear um pouco. Quando quiser encontra-me aqui.
– Adeus meu amigo. Não seja tão contestatário. Procure compreender.
– E bem preciso! Até amanhã.
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