Conversa VI
Comecei hoje a minha caminhada um pouco mais satisfeito. Encontrei pelo menos duas pessoas que conversavam rindo. Deviam contar anedotas. Só assim se pode compreender que riam. A vida está tão triste que realmente não têm de que rir. Dei a minha vista de olhos nas primeiras e últimas páginas dos jornais. Confirmei o que digo atrás. O País acabou de sair do Inferno. Nem mesmo Dante descreveu os horrores que se viveram em quase todo o território Nacional. Que se passará? Ainda me lembro, quando miúdo e no tempo dos comboios a carvão, numa aldeia bem perto de Lisboa, hoje cidade, (cidade...Quem diria!) depois de passar o comboio e nos dias muito quentes, os fogos apareciam. A “bomba”, assim chamávamos ao carro dos bombeiros, passava, ainda a sirene apitava ao chamamento dos ditos. Pelo caminho arrebanhava homens e miúdos que quisessem ajudar. Eu era sempre dos primeiros a correr para a estrada e a apanhar a boleia. Hora e meia depois o fogo estava apagado. As matas eram mais, os matos maiores, os meios muito menores e calor sempre houve. As lixeiras proliferavam, ninguém sabia o que era ecologia, tudo e todos se estavam nas tintas para o ambiente. Só que os fogos eram muito menos, menores e apagavam-se rápido. Lembro-me de algumas lambadas que levei por chegar a casa todo chamuscado. Que se passará? Tenho de perguntar a Jesus! Será Satanás a querer tornar o inferno exógeno? Aliás ainda não lhe falei desta sinistra personagem, satã.
Jesus apareceu tarde. Foi a primeira vez que o vi caminhando. Não tinha aquele ar aberto, prazenteiro e claro dos últimos dias.
Quando se sentou a meu lado inquiri:
– Então? Meu Caro? Vem um pouco acabrunhado. Algo está a correr mal?
– As coisas estão piores do que pensava. Estou a ter mais problemas do que tive lá na Palestina. Ninguém me liga e todos me escarnecem. Não consigo fazer passar a minha mensagem. Por que será que a humanidade só acredita que eu apareci naquela época e não admite que eu possa ter voltado? É estranho! Julgava que os cristãos ficariam contentes com o meu regresso, afinal enganei-me. Todos me repudiam como se eu fosse um perigoso psicopata. Eu só quero tornar a humanidade um pouco melhor, só quero o bem das pessoas...
– Meu Bom Amigo. Começo a ter pena de si. Sabe? As pessoas gostam de acreditar em lendas. Também gostam de acreditar naquilo que não vêem. O que é visível tem pouco de sobrenatural. Parece sempre vigarice. Eu próprio, que não acredito em sobrenaturalidades, também sou céptico àquilo que vejo quando o que vejo é contra ao que a minha inteligência costuma aceitar. Tenha calma, o Senhor é um ser bom. Vai ver que alguém vai acabar por o seguir. Mas desde já lhe digo que vai ser difícil. Veja o que lhe aconteceu lá na Palestina, poucos o seguiram e muitos o aviltaram.
Seria eu a dizer aquilo? Como pode? Aquele tipo estava a virar-me o miolo. Gostava francamente do homem. Naturalmente, se fosse crente, já o tinha mandado às couves. Mas o tipo era inteligente e sabia muito. Era também um bom psicólogo e um bom ouvinte. Valia a pena o colóquio.
– Olhe. Disse-lhe. Vamos acabar com tristezas e vamos conversar sobre aquilo de que gostamos. Diga-me. Quem era Satanás? Foi verdade que ele o tentou?
– Ah! Satã? Sabe o que quer dizer a palavra? Deriva do hebraico aschatân que quer dizer inimigo, adversário. Em todos os sistemas tem de existir oposição; acção/reacção; vapor/contra-vapor; bem/mal. É a teoria maniqueísta. Para haver bem tem de haver mal. Ninguém sabe o que é ter quando sempre teve, mas os que nunca tiveram apreciam e saboreiam quando passam a ter. Se só houvesse bem não havia nada, não se saberia que o bem existia.
– Realmente, Jesus, o Senhor surpreende-me cada vez mais. Rendo-me ao seu conhecimento e à sua lógica. Então quer dizer que o diabo nunca existiu? É mesmo invenção?
– Existe. O mal existe. Está em todos nós. O diabo como pessoa é que não. O Novo Testamento fala nele como um anjo tresmalhado, que o Senhor enviou para as profundezas da Terra, mas isso é mítico, como muita coisa que se escreveu.
– Então realmente essa de ele o ter tentado é mesmo pura invenção?
– Claro! Acha que um anjo, mesmo despromovido, seria tão estúpido que julgaria poder enganar um Deus omnipotente e omnisciente? Isso foi lá colocado por algum escriba menos esclarecido. Era melhor! Dizerem-me a mim para me deitar dali abaixo, sabendo de antemão que nada poderia sofrer se o tivesse feito. Mas cuidado, o mal anda por aí, precavenha-se, esteja atento às suas dúvidas, mantenha a sua consciência esclarecida e procure ser honesto consigo próprio. Oiça, julgue e esclareça. Procure a justiça e não tenha comiseração pelos corruptos e desonestos.
– Meu Caro. Gostava de conseguir isso tudo, mas sou um humano. De qualquer modo a sua explicação veio ao encontro do meu pensamento. Muito obrigado.
Calámo-nos, apertámos as mãos, como bons amigos de há muito. Levantei-me, fiz um aceno e voltei costas. Quando olhei, ele já não estava. Sabia que amanhã voltaria.
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