terça-feira, 13 de março de 2012

O DIABO

Hoje vou "postar" um escrito que já tem uns tempos. Claro que é uma gozação sobre um assunto em que muita gente acredita mas que, claro, é pura invenção dos homens. É um pouco longo mas se não gostarem passem ao lado. A mim deu-me muito gozo.

O DIABO

O diabo estava sentado em cima de uma rocha ardente e sentia um estranho frio nos cascos. Bolas! Estava convencido que tinha apanhado uma carraspana. Andava fungão, com dores nos chifres, muito murcho.
Estava mais deprimido de que um muçulmano depois de ter apanhado a gripe dos porcos. Esta chatice de estar doente punha-o deveras abatido. Até já andava a pensar em meter uma cunha a deus para o curar. E se morresse? Que faria deus sem ele? Lá se iria a oposição e sem oposição perder-se-ia o medo e depois já não era preciso deus para nada. Pelo sim pelo não resolveu antes ir ao médico não fosse deus estar-se nas tintas e começar a pensar na reforma. Para isso teria que mudar de visual e ir até à terra pois os médicos residentes já tinham pendurado as botas, leia-se o certificado médico, e não davam consulta porque nenhuma alma penada lhes pagava. Teria de ir completamente incógnito. Não acreditava que algum médico quisesse tratar o diabo e daí quem sabe, talvez tivessem medo de, contrariando-o, os doentes irem todos para o inferno antes de tempo. Estar doente já é chato, morrer e ir para o inferno é muito pior e ficar sem pacientes ainda pior para um médico. De qualquer modo mais valia ir incógnito, não fossem os doutores apanharem um grande susto. Se bem o pensou melhor o fez. Levantou a cauda da pedra incandescente e já de pé, apesar das dores nas articulações, transformou-se num vulgar cidadão do mundo e teleportou-se para a terra. Zás!!!
Não tinha pensado em nenhum lugar em especial. Apareceu num larguito pacato com alguns cidadãos a passear e logo em frente a uma igreja. Bolas! O filho das trevas, não sei porque lhe deram este nome se no inferno há chamas não pode haver trevas, tinha mais medo de passar frente a uma cruz que um muçulmano tem de ser inumado dentro de uma pele de porco. Afastou-se dali, era lá que estava o filho do patrão e esse já o conhecia de ginjeira, não podia ser por ele reconhecido e por isso teria de evitar postar-se na sua frente. No quiosque do largo, olhou para os jornais e soube que estava em Portugal. Tanto fazia. Devia haver médicos especialistas em gripes diabólicas. Só então reparou que não tinha pensado na indumentária e toda a gente o olhava pois apesar de bem vestido estava todo de vermelho, mudara as vestes não mudara a cor. Foi atrás de uma esquina e converteu a indumentária para outra que copiou de um cidadão que passara, mais a condizer com o seu novo aspecto. Olhou-se ao espelho numa montra e nada viu, esqueceu-se que o mal não tem imagem, mas descansou pois já deveria parecer um pacato cidadão. Só que não conhecia nada de nada e então resolveu tentar entrar à fala com algum transeunte. Foi aí que me viu e fixou os olhos em mim…

Senti um calafrio, como um arrepio na espinha e a pele ficou toda como se de ave de capoeira fora, alguém me fixava e fui obrigado a procurar donde vinha tal sensação malévola. Vi um tipo encostado a uma parede, que me fitava como se fosse alguém que me conhecesse e estivesse em dúvida para me abordar. Sem saber porquê dirigi-me ao homem e perguntei a medo: – O senhor deseja alguma coisa?
O tipo gaguejou, estava pouco à-vontade, contraído e com ar estranho; – Não sou daqui, sinto-me doente e procuro um médico. Poderia ajudar-me e indicar-me um que me possa ver?
– Com certeza! – disse eu.
O gajo tinha um cheiro esquisito, parecia enxofre, os olhos eram de uma cor estranha, nem castanhos, nem verdes, eram para o encarniçado, talvez por via da doença que dizia ter ou então estava etilizado o que não parecia.
– Olhe meu caro. Está mesmo perto de uma clínica. Ali naquele prédio, na esquina da rua ao lado. Vá até lá que deve estar algum médico que o possa ver. Tem cartão do SNS consigo?
– Não, deixei tudo no local de onde vim, mas tenho dinheiro comigo.
– Bem, se tem dinheiro já é meio caminho andado. Paga a consulta por inteiro e ninguém lhe fará perguntas.
Parece que o diabo tinha poderes de ter sempre no bolso a quantia necessária para qualquer pagamento o que era muito bom, já eu não podia dizer o mesmo, pois às vezes bem procurava e não encontrava os carcanhóis necessários para comprar tudo o que me apetecia. Mas estou a adiantar-me pois não sabia ainda que do diabo se tratava. Como o tipo parecia um pouco pacóvio, resolvi acompanhá-lo até à porta da clínica e acabei de, a seu pedido, entrar também para o orientar. Lá marcou uma consulta e teve sorte pois só estavam à sua frente dois pacientes e alguém tinha saído de um dos gabinetes que por acaso até era do médico que lhe destinaram. Passada aí uma meia hora lá entrou, não sem antes me pedir encarecidamente que esperasse por ele, pois que gostaria muito de me conhecer melhor e agradecer-me pela minha disponibilidade de aturar um estranho de forma tão displicente sem nada exigir em troca o que lhe tinha caído muito bem por saber que os tempos estavam péssimos e que a maioria nada dava a ninguém, quanto mais ajudar na adversidade.
Um dia ainda tenho um dissabor por ajudar assim os outros, isto está péssimo já ninguém respeita ninguém nem mesmo aqueles que tentam ajudar. Dá a impressão que anda toda a gente a fugir dos seus semelhantes, a desconfiança é permanente e as adversidades também. Mas como nada tinha que fazer resolvi esperar pelo tipo, que não sendo simpático e de olhar estranho, me despertou alguma curiosidade e um bichinho cá dentro me dizia que seria interessante conhecê-lo melhor.
Quando saiu vinha mais confiante. Até já tossia e fungava menos. Trazia uma receita na mão e vinha com o papel sem saber o que fazer com ele.
– O médico disse-me para ir aviar isto. Primeiro não sei o que é aviar e depois não sei onde.
– Ó diabo! – disse eu.
O tipo deu um salto como se tivesse sido dita alguma ordinarice fora do contexto. Tornei a dizer:
– Ó diabo, então o meu amigo não sabe aviar um medicamento na farmácia? Nunca esteve doente?
– Por acaso é verdade. É a primeira vez que me acontece. Normalmente ando sempre bem e sem qualquer maleita. A minha actividade foi sempre contínua e permanente. Nunca parei. Os meus clientes não me deixam sossegado, estão sempre a aparecer em permanência e eu tenho de os atender e dar-lhes o destino que merecem.
– Que raio de profissão deve ser a sua para ser tão permanente e activa. Isso de estar sempre a trabalhar é diabólico!
O tipo deu novo salto e olhou para mim como se estivesse a penetrar na minha mente, como se pensasse que eu adivinhara a sua actividade.
– Meu caro, não sei o que o meu amigo faz nem tenho nada com isso, mas confesso que estou um bocado curioso. Se quiser especificar e falar sobre o assunto tem aqui um ouvinte dedicado.
O meu interlocutor ficou assim um pouco aparvalhado, como quem não sabe o que decidir, mas para o tirar de apuros resolvi continuar como se não tivesse notado a sua atrapalhação.
– Olhe. Vamos ali àquela farmácia, aviamos os medicamentos e depois vamos a uma pastelaria, podemos tomar qualquer coisa e o meu amigo come o que quiser pois sempre ouvi dizer que não se devem tomar medicamentos sem nada no estômago.
Assim fizemos, tive de o orientar na farmácia e depois de o tipo pagar fomos para a pastelaria.
Pedi um café para mim e perguntei o que o tipo queria para beber e comer, disse-me que o mesmo que eu e acabei por lhe aconselhar um queque junto com o café.
O empregado serviu o pedido mas os cafés vinham bastante mornos o que me desagradou imenso, sopa e café para mim têm de ser escaldantes e há até quem diga que tenho goela de pato o que me deixa sempre sem perceber a analogia pois não conheço nenhum pato que coma coisas quentes. Manifestei o meu desagrado e o meu companheiro pressuroso disse logo, isso arranja-se já, soprou nas chávenas que imediatamente fumegaram aquecendo os cafés no ponto desejado.
– Como é que fez isso? Essa foi digna de um David Coperfield!
O tipo riu-se e pensou que já tinha metido a pata na poça mas o desejo de ajudar fora grande e não medira as consequências.
– Já há pouco o meu amigo também fez uma que levei para o lado das coincidências. Pagou na farmácia 26 € e 30 cêntimos metendo a mão ao bolso e tirando a quantia certa, foi estranho mas pode acontecer, agora esta de aquecer com sopro em vez de arrefecer, é que me deixa deveras espantado.
– Pois. Tenho assim umas coisas incompreensíveis para vocês, mortais.
– Mortais? Que conversa é essa? Todos somos mortais!
– Pois é, mas acontece que eu não sou. Eu sou o diabo.
A gargalhada que dei foi tão espontânea e intensa que toda a clientela presente olhou para mim com espanto, o que deixou o meu companheiro basto encavacado. Só ao fim de algum tempo consegui dominar o riso que teimava soltar-se incontrolável sempre que olhava o meu companheiro. Quando consegui estabilizar, disse:
– Meu caro, o senhor é um grande ponto e logo vir dizer-me essa a mim que sou um céptico que não acredito em absolutamente nada de sobrenatural. Fantasmas não se dão comigo, nem divinos nem maléficos. Mas continuemos a conversa que adivinho ir continuar interessante. Já agora estou curioso e vamos ver se o meu amigo tem estofo para podermos desenvolver dialéctica sobre o assunto.
– Obviamente que sim. – Disse-me ele com um brilhinho avermelhado nos olhos.
– Olhe. Então podemos começar com o princípio, perdoe-se-me a tautologia. Como aparece você? Qual o seu início?
– Meu amigo. Tudo tem de ter oposição. Qualquer existência ou realidade, se não tiver oposição é como se não existisse. Muito mais tarde apareceu um tipo, Manes, depois também chamado Maniqueu, que colocou essa ideia muito bem. Para ele tudo se resumia na dicotomia bem e mal. Foi a teoria maniqueísta que por sua vez defendia as ideias doutro como ele, o Zoroastro a quem os gregos chamavam assim mas cujo nome persa de origem era Zaratustra. Eu era um dos arcanjos de deus, Lúcifer, o anjo luminoso portador da luz. Mas deus era o correcto, o certo, o detentor da verdade e nós éramos apenas os seus capangas ou transmissores dessa verdade. Foi aí que me rebelei, achei que não podia ser, deveria existir oposição pois só assim haveria a possibilidade de escolha. Eu e Gabriel, um dos outros arcanjos, tivemos guerras infinitas e, acabei por ser repudiado por deus e enviado para o mundo das trevas, o inferno. Tentaram acabar com a oposição, mas não contaram com a minha força. Agora dizem que eu sou o mal por ser o oposto a deus. Mas por aquilo que se escreveu muitos dos males foram obra de deus.
– Por isso é que lhe chamaram Satan ou Satanás que deriva do hebraico “ashatan” que quer dizer adversário, porque o nome Lúcifer ou o portador de luz, era o nome dado à estrela da manhã ou o planeta Vénus e, curiosamente, foi também a conotação com Vénus, dada a Jesus, o Cristo, como o portador da luz e que a si próprio se chamou estrela da manhã como descrito no Apocalipse;
"Eu, Jesus, enviei o meu anjo. Ele atestou para vocês todas essas coisas a respeito das Igrejas. Eu sou a raiz e o descendente de Davi, sou a estrela radiosa da manhã.". Assim como em II Pedro 1,19 que diz: "E temos, mui firme, a palavra dos profetas, à qual bem fazeis em estar atentos, como a uma luz que alumina em lugar escuro, até que o dia amanheça, e a estrela D'alva apareça em vossos corações.".
Parece pois, que há aqui algo de errado. Como podem vocês, seres antagónicos, disputarem o mesmo nome?
– Pois. – Disse o adversário. – Mas também há uma interpretação de Isaías, atribuída a São Jerónimo, que diz:

"Como caíste desde o céu, ó estrela da manhã, filha da alva! Como foste cortado por terra, tu que debilitavas as nações! E tu dizias no teu coração: Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte. Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo. E contudo levado serás ao (Seol) inferno, ao mais profundo do abismo.".

– O que me dá a percepção – Retorqui. – De que cada um deu o seu palpite, ou seja, foram construindo, á medida das suas ideias e também das más traduções das ideias dos outros, aquilo que queriam que os seus ouvintes e seguidores acreditassem. Não será assim?
– Pode ser tudo aquilo que o meu caro quiser, o certo é que eu existo, estou na cabeça de milhares.
– Claro. – Prossegui. – Milhares que foram doutrinados. Que ouviram aquilo que os poderosos quiseram que ouvissem, que foram obrigados pelo medo, pelo terror, a crerem sob pena de torturas e ameaças de morte. Assim é fácil construir religiões. Depois escritores e filósofos dissertaram sobre os assuntos descrevendo os horrores que passavam aqueles que, a si, eram destinados. Segundo creio o único que desceu aos infernos e voltou, rezam as escrituras, foi Jesus. Dante descreveu o Inferno mas ninguém acreditou que lá tivesse estado. Eu, meu amigo, não acredito numa única linha daquilo que se escreveu sobre deuses e demónios. Esses estão na cabeça dos que vivem com dúvidas e são medrosos da morte ou de incultos que se limitam a papaguear os ensinamentos catequéticos (não sei se a palavra existe) sem nunca terem tido a curiosidade de tentarem perceber as coisas exigindo explicações, ou que não sabem interpretar as lucubrações cerebrais confundindo imaginação com boas e más energias. A única energia existente nos humanos é a vontade e essa é construída pelo cérebro. É certo que a vontade é uma força, porque é por ela que as realizações se concretizam. Já Saramago expôs isso muito bem na construção daquela maravilhosa personagem do Memorial do Convento a Blimunda. Ela conseguia extrair as vontades aos humanos e com elas encher os balões da Passarola do padre Bartolomeu e assim conseguir a elevação da mesma. Não é preciso ser um exegeta para encontrar nas escrituras e livros ditos sagrados, incongruências e erros crassos hoje já completamente explicados pela ciência.
Há um livro sobre si, escrito por um ateu convertido, não devia ser realmente ateu, os ateus verdadeiros não se convertem, um tal Giovanni Papini, que refere uma opinião de S. Justino, nem sei o que fazia este nem porque o tornaram santo, que você só se torna malvado depois de ter incitado Eva à desobediência, e também refere, que segundo Dante e vários teólogos, o meu caro entrou em queda apenas por inveja do homem. Inveja de quê? Por o homem ser protegido de deus? Pelos vistos até parece que não era assim tão protegido, se o fosse não lhe teria sido permitido pervertê-lo. Penso que o meu caro não teria assim tanto poder para por em causa os desígnios divinos. Foi, portanto, pela vontade de deus que você levou a desgraçada da Eva a dar a tal dentadinha na maçã. Vejam lá! Como se daí viesse algum mal ao mundo.
Mas agora pergunto eu? Antes do mestre ter criado o homem, com que é que vocês, deus e arcanjos, se entretinham lá no céu ou no Olimpo ou lá onde isso fica? Já pensavam nas maldades com que iam atormentar a pobre humanidade ou jogaram xadrez? Nessa altura você ainda era um sectário divino. Tiveram muito tempo para se divertirem. Com os milhares de anos em que na terra ainda não tinham aparecido os humanos, devia ser tristonho e demasiado pacóvio fazer o bem e também maldades às bichezas existentes. Foi muito tempo de inacção. Não se chateavam?
– O meu amigo, se me permite que o trate assim, está a tentar confundir-me, eu não me lembro, parece até que ninguém se lembra. Foi muito tempo sem nada que fazer. Nunca ninguém escreveu sobre isso e nós agora também não sabemos. Aliás o mestre sempre disse a toda a gente que tinha criado a terra em 6 dias e logo a seguir fez o tal bonequito de barro, o Adão. Antes disso não sei realmente o que andou a fazer.
– Caro Lúcifer. Vocês, divinos ou maléficos, são uma fraude. Vivem apenas nos cérebros dos homens, nos seus pensamentos, castrados pelos escritos, maus escritos, daqueles que vos inventaram para domínio dos pobres de espírito. A mim, e felizmente a muitos mais, vocês não convencem
– Olhe, já me sinto melhor e vou voltar para as profundezas onde ponho e disponho. Lá sou rei e tenho poder acima de deus. Ninguém manda em mim. Mas gostei imenso de falar consigo. O meu amigo, além de não me temer, ainda põe em causa a minha existência. Isso é bom para si. Mas eu fico ainda com muitos seguidores, ou melhor, acreditadores porque seguidores há poucos.
– Pois! Fuja à discussão. Não tem argumentos, não é?
Fiquei a sorrir a olhar para o tipo, estivemos assim vários minutos, olhos nos olhos. Ele com sintomas de vencedor, eu a pensar que neste mundo há cada um…
Fomos despertados pelo barulho de uma ambulância a chegar. Parou à porta da pastelaria e dela saíram dois paramédicos que entraram com um colete-de-forças.
– Ah! Estás aí Satanás? Como te piraste sem darmos por isso? Estávamos já a sentir a tua falta.
Sem lhe darem tempo a qualquer gesto, manietaram-no e colocaram-lhe o colete levando-o quase de arrasto para a viatura. Ao chegar à porta, o indivíduo virou-se para mim, sorriu e piscou-me o olho como se me agradecesse por o ter ouvido. Tive pena dele.
Reparei que não tinha acabado o meu café. Levei-o à boca. Estava ainda bem quente…
Na ambulância, um colete-de-forças vazio, rumava direito ao hospital.
Lá bem nas profundezas, o demo, já não tossia nem fungava e ria-se para si próprio por ter tido ideia tão idiota de ir até lá acima. Pensava que seria bom apanhar lá em baixo o tipo que o ajudara. De certeza poderiam continuar a ter conversas interessantíssimas. Esperava que ele se portasse bem mal enquanto vivesse.
Por mim vou fazendo o que posso…

Rui Cabral Telo

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