terça-feira, 17 de abril de 2012

TEMBO

Afinal ainda há alguma "matéria" para postar. 

 

(Um dos capítulos do meu livro "Caçador Branco")

 

O pequeno Tembo encolhia-se a um canto da grande cubata. Os olhos já se tinham habituado à penumbra existente na área. Quase não podia estender as pernas e já estava a senti-las dormentes. O espaço estava quase todo ocupado pelos outros homens que com ele foram ali metidos à força sob a ameaça do chicote do grande árabe que os surpreendera na lavra não tendo tempo para esboçar qualquer gesto de defesa ou fuga. Com três homens armados de metralhadoras, dominaram-nos obrigando-os a deitarem-se na terra de cara para baixo quase sufocando. Separaram-nos das mulheres e a partir daí não mais vira a sua mãe. Tembo deixava correr as lágrimas e não conseguia conter os soluços. Aqui e ali ouviam-se alguns gemidos dos homens ainda doridos das pancadas que lhes aplicaram. Em Tembo não tinham batido. O grande árabe de botas pretas sobrepostas nas calças vermelhas e largas subidas na cintura, de tronco nu e chicote na mão, assemelhava-se ao diabo que a mãe lhe descrevera. Como o Demo, também ele tinha barbicha e devia esconder os cornos por debaixo do turbante branco enrolado na cabeça. Tinha-o olhado nos olhos e enfrentara-o. A mãe dissera-lhe que se fosse bom menino nunca deveria temer o Diabo. Agora que ele aparecera não o temera. O certo é que aquele monstro de olhos pequenos e demasiado pretos, dera uma grande tapa no homem que o prendia e magoava com enormes safanões. A partir daí fora o único a quem não ataram as mãos, mas a sua liberdade era fictícia, nem por um momento lhe tiraram os olhos de cima.
Ali sentado naquele canto, no chão de terra, cansado dos muitos quilómetros que andara pelo mato, chorava em silêncio pensando quando voltaria a ver a sua mãe. Onde a teriam metido? Será que estava viva? Tremia só de pensar o que lhe poderiam ter feito. Tembo era já um homenzinho e sabia muito bem para que os homens querem as mulheres, então uma jovem e bonita como a sua mãe ainda era. Não conseguia deixar de chorar. De repente Tembo reprimiu o choro, ouvira vozes exteriores, em tom baixo, como se duas pessoas conversassem. Foi-se esgueirando por entre os corpos até se postar junto à parede donde lhe parecia que as vozes provinham. O árabe e um dos homens falavam baixo mas dava para perceber. Com um sotaque estrangeiro, o demónio dizia para o outro que logo de manhã continuariam a marcha até ao local onde entregariam a mercadoria. Claro que Tembo sabia muito bem a que mercadoria se referiam. Iam vendê-los a alguém que esperaria no tal local. Pela descrição Tembo reconheceu o sítio de que falavam. Ele e o pai, quando caçavam, deslocavam-se por vezes muitos quilómetros durante vários dias e conhecia perfeitamente a clareira que ouvira o homem descrever. Começou a pensar rapidamente. Tinha de fugir antes de lá chegarem. Só em liberdade poderia ser útil e procurar a mãe. Voltaria à sanzala, falaria com o Chefe e o pai, e de certeza alguém os auxiliaria a encontrar os cativos.
Não podia deixar chegar o amanhecer. Em marcha seria muito difícil enganar os meliantes. Ainda tinha tempo. Teria de fugir esta noite. Esgueirou-se de novo para a parede contrária daquela onde os homens falavam. Procurou com as mãos um espaço entre os paus de palmeira que formavam as paredes. Com as mãos e os dentes começou a arrancar as folhas secas ferindo-se nos gumes cortantes das mesmas, mas não parava. Um dos homens acordou e começou a ajudá-lo. Uma hora depois já tinham conseguido um buraco suficiente para Tembo meter a cabeça e espreitar. Do lado de fora não estava ninguém. Certamente a sentinela daria a volta de vez enquando, teria de ter cuidado quando saísse. Apesar da noite escura Tembo vislumbrou vegetação suficientemente perto para se poder esconder logo que se libertasse. Levaram outra hora a alargar o buraco até lhe caberem os ombros. Tembo meteu a cabeça e começou a esgueirar-se para o exterior, o homem que o ajudara teria de ficar ou alargar mais o buraco, mas Tembo não esperaria. Assim que se apanhasse fora teria de correr como o vento. Quanto maior distância pusesse entre eles e os sequestradores mais hipóteses teria de levar a fuga a bom termo. Fez sinal ao companheiro que o ajudava para o informar que iria sair. Disse-lhe que não esperaria por ele e se também conseguisse fugir que rumasse à sanzala pois seria para lá que se dirigiria.
Esgueirou-se pela abertura com alguma dificuldade, os paus arranhavam-lhe o corpo mas não sentia, a ânsia de liberdade era mais forte. Assim que se libertou totalmente, ficou um pouco parado junto à parede escutando. Como nada ouviu, levantou-se e correu para os arbustos perto e parou. Aparentemente ninguém dera pela fuga. Levantou-se e começou a correr na direcção de casa, um rapaz do mato, como ele, orienta-se como os bichos.
Corria como se o diabo o perseguisse, e até podia ser verdade. A respiração foi-se tornando cada vez mais ofegante, mas Tembo estava habituado a correr atrás das cabras e os seus pés descalços e calejados, mal tocavam o solo da floresta húmida. Ao fim de um par de horas a correr e a andar, parou para descansar. Subiu a uma árvore e procurou com o olhar, por entre a bruma matinal, se vislumbrava ou ouvia algo que lhe desse a segurança de ninguém o perseguir.
Deixou-se estar lá em cima uns bons minutos, os olhos fechavam-se mas Tembo sabia que não podia dormir. Lembrou-se que deveria estar perto do local onde o pai tinha quebrado uma lança ao tentar segurá-la depois de ter atingido um gulungo e o animal ao contorcer-se a partira. Lembrava-se de o pai a ter deixado lá. Tinha de a encontrar. Iria levar um bom par de dias até casa e precisava de comer.
Quando chegou perto do local onde a lança se partira, começou a ter dúvidas, no mato às vezes tudo parece igual outras vezes diferente. Tinha de se recordar exactamente. Fechou os olhos procurando rever tudo o que se passara naquela manhã. A corrida que deram atrás do golungo, a volta que deu correndo para dirigir o bicho na direcção do pai, o lançamento certeiro do dardo sobre o pequeno antílope e depois o pai a tentar segurar a lança enquanto o bicho se contorcia. Como, depois da lança se partir, o pai com um golpe certeiro da catana curta, que sempre trazia à cintura, liquidou o animal. Como se riram no fim antes de trincharem a bicheza e levarem a carne para casa em sacos a tiracolo.
Abriu os olhos, olhando em volta pressentiu que estava perto. Fez dois círculos alargando cada um deles. Ao fim da segunda volta reconheceu imediatamente o local. Andou uns metros até encontrar os vestígios do capim pisado, a lança estava um pouco mais à frente. Tembo perdeu umas boas duas horas a reconstruir a lança. Com a ponta metálica da mesma, que afiou numa pedra, descascou e alisou um ramo transformando-o num pau de lança. Fez um entalhe no improvisado cabo e prendeu a ponta com uma liana que entrelaçou. Tembo já tinha construído muitas lanças mas na sanzala tinha outras ferramentas que não ali. Depois do trabalho apressou-se a encontrar uma boa árvore para dormir a fim de se defender dos predadores. Poderia era ser surpreendido por alguma onça e a pensar nisso colocou a lança perto e ao alcance mão.
Acordou já se notava o romper do dia. Desceu da árvore e pôs-se a caminho. Tinha caminhado umas horas quando chegou à orla da mata de arbustos baixos. À sua frente estava uma planície de capim curto onde pastavam alguns nunces e pequenas gazelas. Tembo avistou uma gazela das mais novas que estava mais perto da orla de mato. Penetrou na vegetação e lentamente foi-se aproximando do local onde a pequena gazela pastava. Arrastou-se durante alguns metros, com a lança numa das mãos, até avistar o bicho. Quando já se encontrava a boa distância levantou-se e correu em direcção da sua presa que apanhada desprevenida, levou algum tempo a mover-se. Quando o fez, foi atravessada pela lança de Tembo que tinha feito um arremesso perfeito. Abriu o animal com a própria lança. Não tinha tempo nem era seguro fazer fogo. Cortou os lombos e comeu um bom bocado de carne crua. Espremeu o fígado para a boca engolindo bastante sangue vivo. Fez um saco com folhas largas e com uns juncos uma alça para o transportar a tiracolo, metendo-lhe uns bons pedaços de carne para o resto da viagem. Chegou à sanzala na tarde do dia seguinte. Cansado, sujo, com a camisa e os calções de zuarte esfarrapados, aproximou-se da grande cabana do Chefe. Junto dela encontravam-se dois carros com alguns homens por perto. Receoso deu a volta e espreitou pela abertura que servia de janela. O Chefe falava, com ar amistoso com dois homens sentados à mesa. Tembo reconheceu o seu amigo caçador branco. Cheio de alegria e lágrimas nos olhos correu para a porta e entrou.
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