sábado, 14 de abril de 2012

O SEM-ABRIGO

Resolveu mudar de local onde dormia. Tentaria encontrar um sítio abrigado onde estivesse só. Tinha permanecido três semanas no mesmo sítio mas as companhias não lhe agradaram. Na rua encontra-se de tudo, desde tipos com problemas psíquicos a calaceiros e bandidos de toda a espécie. Ele só queria estar sossegado consigo próprio. Encontrou um viaduto com uns pilares em ângulo que permitiam um bom abrigo. Junto a uns caixotes do lixo escolheu alguns cartões limpos e secos e colocou-os no chão pondo-lhes por cima uma manta que tirou do saco de lona. Ainda bem que, em tempos, comprara aquele saco na feira da ladra. Era um saco militar que levava montes de coisas. Trouxera de casa o essencial para poder viver na rua. Duas mudas de roupa davam-lhe para usar e lavar. Tomava banho nos balneários públicos o que permitia não ter muito mau aspecto. O pior era a barba e o cabelo, estavam a crescer e, os aparanços, que fazia, apenas com uma tesoura, não lhe davam lá grande aparência. Mas também que lhe importava isso, tinha decidido sair de casa e viver na rua era a solução. Trouxera alguns livros que ia lendo enquanto tinha luz. Ler é uma forma de nos abstrairmos da nossa vida e vivermos a das personagens e autores. Nos intervalos cogitava no que tinha sido a sua existência. A vontade de ganhar dinheiro sem ter que aturar patrões ou chefes levara-o a deixar a função pública e tentar a sorte estabelecendo uma firma de informática. As coisas começaram a correr bem e rapidamente teve de contratar pessoal e aumentar o espaço. Alugou um escritório numa garagem adaptada para o efeito e, felizmente, bem perto de casa. Os clientes foram aparecendo e os proveitos aumentando. A melhoria de vida foi notória. A mulher e os filhos exultaram por poderem ter o que até ali lhes tinha sido proibido. Foram anos felizes aqueles, só que não conseguira amealhar o suficiente e a crise apareceu entretanto. A concorrência das grandes firmas obrigara-o a baixar preços e a ter que dispensar pessoal. Trabalhou que nem um cão elaborando sozinho programação e “sites”. O material estava a degradar-se e desactualizar-se. Foi preciso utilizar as reservas e constituir dívidas para a renovação. Os clientes começaram a diminuir, uns por falência, outros por não poderem pagar e outros ainda por terem encontrado mais barato. Daí à falência foi um passo. A “crise” devorava tudo e todos. A vida em casa degradou-se. A mulher, que ele adorava, acusou-o de mau gestor e de demasiada ousadia em ter deixado um emprego de estado para se aventurar na constituição da firma. Os filhos nada diziam e sofriam com as constantes discussões entre os pais. Começaram os constrangimentos devido às zangas constantes. Esqueceram-se todos da felicidade conseguida quando a firma lhes dava o que nunca tinham tido. Agora a culpa era dele. A sua mulher conseguiu um emprego numa loja de um centro comercial que pertencia a uma amiga. A reforma que tinha do estado, muito prejudicada pela antecipação, não chegava para as despesas da casa. Não aguentou a pressão nem a falta de compreensão da sua companheira. Resolveu deixar a casa. Sem ele talvez o dinheiro chegasse. A sua pensão cairia todos os meses na conta comum e podia ser utilizada. Se as coisas não mudassem, viveria só, até encontrar coragem para se passar. Só que, se morresse, os seus ainda ficariam com menos. Com o cabelo comprido e de barba grande, ninguém o reconheceria e também não o dariam como morto pois tinha tido o cuidado de deixar escrito em casa que não o procurassem pois ia deixar o país em busca de melhor solução. Assim evitaria idas à polícia para participarem o desaparecimento.
Começava a habituar-se ao frio. As camisolas de lã que trouxera, as luvas e as mantas eram suficientes. A luz do candeeiro da frente dava-lhe para poder ler até tarde e, para dormir tapava a cabeça com a manta. Uma refeição por dia, nos refeitórios públicos e uma bucha à noite, supriam as suas necessidades básicas e, não fora a saudade da mulher e filhos, começava a pensar que afinal a vida de vagabundo não era assim tão má.
Durante o dia, os passantes olhavam curiosos para aquele sem abrigo que passava a vida a ler. Alguns até se aproximavam para lerem os títulos. Um ou outro chegava mesmo à fala com ele para tentarem saber quem era e porque optara por aquela vida. A todos respondia educadamente dizendo que fora uma opção por motivos demasiado profundos para serem discutidos com estranhos. Mas se alguns eram movidos apenas pela curiosidade, outros entravam em discussão dos temas literários. Aí ele pegava na conversa e prolongava as discussões. Assim o tempo passava sem que entrasse em depressão nem em conjecturas negativas. Começou a ser conhecido pelo sem-abrigo intelectual e alguns dos passantes começaram a trazer-lhe livros. Qualquer dia tinha de começar a distribuí-los pois já não tinha espaço para mais. Quando o tempo estava bom, deixava o seu canto e dava alguns passeios principalmente pelos jardins da cidade. Muitas vezes deu com ele a caminhar até à escola dos filhos e deixava-se estar, meio escondido, até os ver chegar. Já tinham idade suficiente para se deslocarem nos transportes públicos e viajavam sempre os dois. O rapaz, como mais velho, acompanhava a irmã preservando-a de todos os problemas que hoje se apresentam a uma rapariga só. Depois de entrarem para as aulas, pedia ao segurança para dar uma vista de olhos às pautas. Felizmente os seus rebentos iam bem e tinham notas muito razoáveis. Um dia, à tarde, viu a mulher que fora buscar os filhos. Continuava linda e elegante. Não conseguiu prender uma lágrima teimosa e afastou-se rapidamente.
Haveria de sobreviver… assim o governo deixasse. Mas no fundo pensava que o governo se estava “marimbando” para ele e outros como ele. A eles nada faltaria. A mesa do orçamento é ampla…

2 comentários:

  1. Olá,amigo Telo.
    O sem-abrigo da tua história pode considerar-se um felizardo. Tem com quem falar, discutir ideias, marcar a sua presença e matar as saudades da mulher e dos filhos. Ontem, vi uma reportagem na RTP 1, sobre os sem-abrigo portugueses em Londres. Tem a sua diferença. Uma realidade que nos aperta o coração. As duas desgraças que relataste, hoje e sexta-feira, são fruto do mesmo problema a ganância que deitou a economia de pantanas. O que nos reserva o futuro? Como inverter a situação? A tua escrita não é ficção, é a realidade cruel que vivemos.
    Um abraço

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  2. Agradeço os teus comentários. És dos poucos que o fazes. Continua. Saber que nos lêem dá ânimo para continuar. Vamos ver se não se me acaba a prosa. Abraço

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