quarta-feira, 18 de abril de 2012

DANÇA EM SÃO SALVADOR

As noites eram difíceis em São Salvador do Congo. O 1º Sargento recitava poemas do seu particular “amigo” Luís Vaz, como se referia normalmente a Camões. Os dois furriéis ouviam-no em silêncio. Um era bailarino no grupo Verde Gaio. O rapaz era demasiado sensível. Usava o retrato da sua namorada, também bailarina, na carteira e chorava cada vez que o olhava. O capitão, de olhos semicerrados, já com as pálpebras pesadas devido aos “whiskys” que bebera, pensava na família mas escutava com prazer o seu Primeiro. Ir para a cama já “pesado” era uma forma de chamar rapidamente o sono, caso contrário, levar-se-ia demasiado tempo até que as imagens daquela guerra, que ninguém queria, se dissipassem das consciências. Naquela noite, bem amena e quente, não apetecia deitar. O capitão falou para o seu furriel:
− Olha lá! Tu, que és bailarino, nunca dançaste para nós. Vais fazê-lo hoje. Vamos até lá fora. Está toda a malta a dormir. Só nós vamos assistir.
− Meu Capitão. Não me obrigue a uma coisa dessas, nem sequer temos música.
− Estás enganado. Temos aí o gira-discos, pomo-lo baixinho aqui na mesa, abrimos a porta e tu danças lá fora.
O rapaz ia dizendo que não e o capitão não insistiu, mas sempre foi pondo o Lago dos Cisnes a tocar. Os discos tinham sido lá deixados por um furriel anterior, que era cantor no coro do São Carlos. O capitão pensava que deveria ser o único comandante com dois artistas como subordinados.
Saíram todos e o 1º sargento continuou a declamar como se sozinho estivesse. A melodia excepcional de Tchaicovsky, apesar de quase em surdina, enchia o ambiente. O furriel, calado, ouvia a música deslocando-se quase como se dançando estivesse. A pouco e pouco foi entrando em crescendo e a dança evoluiu até aparecer em esplendor total. Todos se encostaram à parede do barracão JC e em silêncio, até o nosso 1º abandonou o seu “amigo” Luís Vaz”, apreciaram aquela manifestação de arte que ansiosamente o rapaz manifestava como se o seu corpo se transportasse, para um palco do seu Portugal.
A música parou e o nosso furriel, após um último rodopio, caiu de joelhos e inclinou a cabeça para a frente, cobrindo a cara com as mãos. O capitão levantou-o e abraçou-o agradecendo. O rapaz chorava.
− Meu Capitão. Que vergonha. Eu não queria.
− Deixa lá. Foi belo. As tuas botas de lona até pareciam sapatilhas. Dançaste bem. Estamos todos comovidos. Vamos dormir. Amanhã já nem te lembras.
Mas não dormiram logo. O moço, talvez dos rodopios e da bebida, vomitou as tripas e tiveram que o assistir.
O capitão, já no seu quarto, não conseguiu dormir e foi escrever à mulher. Cinco aerogramas, devidamente numerados, tentaram descrever todos os sentimentos que o assaltaram naquela noite.
Em Luanda, a sua mulher chorava, com o filho ao colo, lendo os aerogramas, que chegaram como sempre, totalmente baralhados, mas ler o 3 antes do 1 ou o 4 depois do 5, não importava. A mensagem estava lá. A porcaria da guerra também…

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